Catarina Portas:
"Raramente compro produtos brancos"
por Luís Reis Ribeiro
Catarina Portas, nasceu em Lisboa há 40 anos. Em entrevista, fala do que já conseguiu como empresária, do estado do país, dos desequilíbrios provocados pela globalização. Tem duas lojas "A Vida Portuguesa" - uma em Lisboa, onde nos recebeu, outra no Porto. Está a pensar em abrir mais espaços, cá ou mesmo lá fora. Quer escrever um livro sobre aquilo que mais a fascina: As marcas antigas portuguesas. E contar a história dos portugueses através do consumo e do comércio. Responsável e local.
Como surgiu a ideia de fazer esta despensa?
Em 2004 eu andava a pensar fazer um livro sobre a vida quotidiana em Portugal, ao longo do século XX, porque me parecia que havia um enorme desconhecimento da minha geração e de outras mais novas. A forma como as pessoas viveram e foram educadas durante essa época condicionou-as muitíssimo até aos dias de hoje. E foi ao fazer essa pesquisa que me ocorreu que fazia todo o sentido construir uma despensa de época. Já tinha feito um trabalho 12 anos antes, para a revista "Marie Claire", como jornalista, recolhendo produtos antigos. Percebi que a maior parte dos produtos que encontrei e fotografei tinha desaparecido. Nalguns casos, era uma pena. Eram interessantes e o mercado do design, que hoje é tão valorizado - diria até sobrevalorizado -, acolheria bem este tipo de produtos de design histórico, pensei.
São mais autênticos?
Talvez mais exóticos.
A que se deve esse exotismo?
Portugal esteve fechado ao exterior durante décadas, passámos um bocado ao lado das guerras também e os produtos não tiveram necessidade de se modernizar para concorrer num mercado internacional. Estamos a falar de mercadorias que têm a mesma embalagem há 60 anos. As farinhas têm embalagens absolutamente delirantes. E pensei que, tal como eu, há de certeza muita gente que vai achar graça a isto.
E os produtos são bons?
Foi o que pensei. Produtos há tantos anos no mercado dificilmente seriam maus. O passo seguinte foi: como fazer para isto não desaparecer? Arranjei umas caixas e comecei a juntá-los por temas, a tentar dar coerência. Será que isto se pode vender assim? Depois investiguei a sua história.
E sentiu que podia fazer negócio.
Sim. E nunca na minha vida tinha tido um negócio, a minha família não tem qualquer ligação ao comércio.
Ainda era jornalista nessa altura?
Era uma jornalista muito freelancer. Estava numa fase em que não sabia muito bem o que fazer à minha vida, tinha muitas dúvidas. Queria fazer documentários, uma coisa que difícil de fazer em Portugal, e que na altura mais difícil era. Estava sempre à espera de ter orçamento para fazer um filme. Entretanto surgiu esta ideia que propus a várias pessoas. E uma amiga minha que tinha experiência em comércio aceitou fazê-lo comigo.
Começaram por fazer o quê?
Uma semana depois de conversarmos estávamos nas fábricas, para conhecer as pessoas que os faziam, para ver como é que os produtos eram feitos, no fundo perceber a realidade das coisas. Surpreendentemente, do primeiro catálogo que pusemos à venda, numa loja de design aqui do Chiado, e que já não existe, vendemos várias dezenas. Em dez dias, até ao Natal, foi um sucesso. E nem sequer eram muito baratas. Foi o nosso primeiro estudo de mercado, por assim dizer. Percebemos que tinha pernas para andar.
A Vida Portuguesa, em Lisboa, abriu em Novembro de 2006. Já dá lucro?
Já. Só comecei a tirar salário dois anos depois de abrir. Tudo o que ganhava reinvestia. Foram anos muito entusiasmantes, como calcula, mas também difíceis. Nem sei muito bem do que é vivia.
Do que é que vivia?
Ia fazendo traduções e coisas variadas.
Os pequenos e médios empresários queixam-se bastante da situação económica e financeira. Sente a crise?
Entrei no negócio certo, no momento exacto e hoje, como vê, está a correr muito bem. Há um ponto de partida para esta ideia de negócio: os portugueses não têm muita auto-estima, isso é um facto. Depois surgiu aquele concurso dos Grandes Portugueses, muito polémico na altura, mas que na verdade abriu a porta para se começasse a falar sem rodeios do passado.
Mas os portugueses adoram falar do passado.
Sim, mas esse passado está muito ligado a tempos difíceis e é disso essencialmente que se fala. Nunca das coisas boas. E de algum modo estes produtos podem ser associados a essa época, mas penso que reflectem algo muito diferente.
Podem ser associados à ditadura, ao tempo de Salazar?
Podem, mas eu não concordo de todo com esse tipo de associação. A maior parte dos produtos que vendo surgiu muitos anos antes de Salazar ter assumido o poder e hoje continuam à venda, muitos anos depois de ele morrer.
Já a acusaram de ser reaccionária?
Não, mas já disseram que estava a ser saudosista. Foi o que fizeram com os Heróis do Mar. O que me fascinou desde o início foi a possibilidade de contar a história dos produtos e com isso um bocadinho a história da vida quotidiana de Portugal e de quem os faz. As embalagens são bonitas, mas é muito mais que isso. Saber, por exemplo, que os sabonetes Ach Brito/Claus Porto vêm de uma fábrica fundada por dois alemães no final do século XIX, no Porto; que a fábrica Confiança, também fundada no final desse século em Braga, tanto fez um sabonete a celebrar a exposição do Mundo português, como o da Grândola Vila Morena. No fundo, é a história do país contada da perspectiva do consumo [ler mais em www.avidaportuguesa.com].
A vida portuguesa dava um livro?
No fundo, o projecto seminal era esse. Fiz a investigação nas fábricas, vi os arquivos. Mas para fazer o livro é preciso dinheiro. Como ninguém me pagava esse projecto, arranjei o negócio. Como este arranjou perninhas para andar e até já corre, espero poder fazer o livro no próximo ano.
Como é que financiou este projecto? Precisou de ir ao banco?
Nunca fui ao banco. Pedimos apenas uma letra durante um mês para fazer uma loja temporária de Natal, mas isso foi mesmo no início. De resto, nunca precisei dos bancos, nem me ocorreu pedir subsídios públicos.
Porquê?
Estou a fazer um trabalho que, acho, o Estado teria obrigação de fazer. Porque estou a defender um série de empresas históricas que significam mais do que são, mais que o seu tamanho ou que os produtos em si. Estamos a falar de história, de um saber fazer secular, de identidade. E estamos a falar de empresas que são todas viáveis.
Este projecto está a abrir mercado. Salvou algum produto da extinção?
A maior parte deles estava disperso pelas mercearias e drogarias do país, que são cada vez menos. Os hipermercados raramente têm estas marcas. Estas fábricas não produzem nessas quantidades. Mas há uma razão maior: a grande distribuição está neste momento, com os produtos brancos, a matar a produção em Portugal e nesse sentido este projecto dá visibilidade ao que ainda existe.
É também um projecto ideológico, politicamente correcto?
Na medida em que o consumo também é um acto político. As pessoas podem mudar as coisas consoante aquilo que compram. Quando o fazem dão valor ao que é produzido, à forma de produção, ao lugar onde é produzido.
Não compra produtos brancos?
Raramente o faço. Prefiro comprar menos, mas saber o que compro e de onde vem, conhecer o passado das coisas.
Produtos para consumidores responsáveis, é isso?
É verdade que eu criei um público. Dantes eram comprados por pessoas diferentes.
Mas é uma questão de gosto também. Não vendem pelo aspecto?
Também. As embalagens são decisivas. Ou são as originais, ou são fortemente inspiradas no design original. Procurei ter aqui produtos que eu própria usasse. Experimentei todos.
São melhores do que os do supermercado?
Têm características que os engrandece. Sei que se usar um sabonete da Claus Porto, ele irá durar meses. O mesmo produto de supermercado dura três semanas. Assim é para que as pessoas o gastem o mais depressa possível e voltem lá para comprar outro. Estes produtos são bons, alguns são francamente melhores. E mais ecológicos. O limpa-metais Coração é o melhor produto da sua gama, provavelmente até em muitos países. Usa-se muito para limpar metais amarelos dos barcos, faróis...
Se duram mais, são mais caros?
Podem ser um pouco mais caros, mas acho que a diferença compensa. Muitos são feitos ou acabados à mão, como os cadernos da Emílio Braga. E a qualidade intrínseca é melhor em muitos casos. O mesmo com os sabonetes. Quando sentem isso, as pessoas tendem a estimar mais as coisas e isso também faz com que os produtos durem mais e que o consumo seja mais regrado.
A globalização é boa ou má?
Depois do 25 de Abril, Portugal abriu as fronteiras a todas as marcas estrangeiras e toda a gente estava deslumbrada. E ainda bem que chegaram, acho que óptimo haver mercados abertos. Mas não aceito que produtos e modos de fazer bons tenham de desaparecer. Vivemos num mundo com reservas finitas em relação a tudo. Faz sentido comprar espinafres da Austrália? Para quê?
São mais baratos.
Mais baratos?! Não eram nada!
Muitos são mais baratos, há acordos de comércio que ditam regras, porque traz vantagens a alguém...
Mas fretar aviões para trazer espinafres da Austrália?! Já viu o combustível que se gasta quando os espinafres podem ser plantados aqui? É vantajoso para o planeta? Porque razão não há mais hortas comunitárias? É preciso repensar tudo neste momento e não nos devemos conformar. Em suma, para mim o destino destas empresas que vendo aqui nunca esteve traçado, nem está por traçar.
O comércio global chegou a um ponto de exaustão?
Já aprendemos muito sobre os tipos de produção e de comércio que a globalização trouxe. Alguns casos são bons, outros resultam em miséria para as pessoas. Quando digo que o comércio é um acto político é porque quando uma t-shirt custa dois euros alguém está a pagar muito caro esse preço que para mim é barato. Por trás dessa t-shirt alguém estará a ganhar misérias, a trabalhar horas a mais, há crianças a serem exploradas. Não é possível vender essa t-shirt a esse preço de forma justa. É preciso que as pessoas acordem. Não estamos num mundo de milagres.
Paga bem aos seus empregados?
Acho que pago melhor do que muito dos comércios locais. As pessoas têm sido aumentadas todos os anos e bem acima do valor da inflação.
E o vínculo delas é estável?
Tento fazer contratos com prazos mais dilatados. Toda a minha vida estive a recibos verdes. É uma noção estranha para mim que uma empresa tenha de contratar alguém indefinidamente. Hoje tudo muda muito. As empresas crescem, diminuem de tamanho. O mercado de trabalho tem de ser mais flexível por isso.
As pessoas gostam de trabalhar aqui?
Acho que sim. Pelo menos andam bem-dispostas [risos].
Quem são os seus clientes?
É uma clientela francamente democrática. Temos ricos, pobres, novos, velhos, portugueses, estrangeiros. Tanto podemos ter aqui os alunos das Belas Artes [faculdade] que vêm comprar ArtGraf, uma aguarela de grafite fantástica da Viarco, como vêm pessoas com mais posses que compram cerâmicas grandes da Bordalo Pinheiro, ou a senhora do Bairro Alto que já não encontra o perfume na drogaria da rua.
É mais loja de prendas ou despensa de bairro?
Compram-se muitas prendas pelo charme dos produtos, mas já vem muita gente que compra com regularidade.
Tem clientes famosos, presumo.
[Risos] A Fanny Ardant, que veio cá buscar umas andorinhas [Bordalo Pinheiro] que lhe ofereceram, a Susan Saradon, políticos portugueses de todos os partidos, Marcelo Rebelo de Sousa e outros como D. Duarte Nuno, que é nosso vizinho. O Marcelo elogiou muito a loja, disse que era o melhor sítio que conhecia para levar prendas aos amigos com mais de 50 anos. E temos um cliente óptimo do Bloco de Esquerda [risos].
Abriu uma loja no Porto. Este conceito faz sentido noutras cidades do país ou até fora de Portugal?
O espaço do Porto é magnífico. Aproveitámos tudo, tudo o que lá estava dentro, as mobílias todas. A única coisa que levámos para lá foi um sofá. Património não são apenas as fachadas dos edifícios, é o recheio também. E quando se faz isso o resultado é quase sempre brilhante. O inverso prova isso: vejam-se as lojas da Baixa de Lisboa que foram todas partidas por dentro nos anos 80 e o que resta hoje são interiores de plástico, sem qualidade nenhuma, a maior parte. É lamentável. Os centros históricos têm de aproveitar isso, por dentro e por fora, para poderem concorrer com os centros comerciais. Caso não o façam, estão mortos.
Têm de ter um horário mais flexível.
Pois. Têm de abrir até mais tarde e ao domingo se isso fizer sentido. Mais que isso: os comerciantes têm de se juntar, de se organizar.
A sua loja está a ser tomada como exemplo por outros empresários aqui do perímetro?
Aqui na zona não existem réplicas deste conceito ou coisa parecida. A novidade foi que dinamizámos esta rua [Anchieta]. Quando aqui chegámos isto estava morto. Hoje veja, há cafés novos, restaurantes, ateliers. Aqui ao lado, a rua Garrett tem preços proibitivos para pequenos negócios novos. Só empresas grandes ou multinacionais é que aguentam aquelas rendas. Mas todas estas ruas adjacentes têm espaços vazios que podem acolher outros comércios mais inesperados e excitantes. Assim o espero.
A tradição está na moda?
As pessoas mais atentas repararão que estão a surgir um pouco por todo o país lojas de produtos antigos portugueses, que vendem algumas das marcas que nós aqui temos e que nós próprios revendemos. E isso é inicial porque a nosso propósito inicial era que estas marcas vendessem mais para não desaparecerem. Algumas serão inspiradas nesta, mas ainda bem.
Acha que, de algum modo, está a ajudar a salvar fábricas e empregos?
Não sinto isso. Não se salvam fábricas com uma loja, nem tão pouco sou a Nossa Senhora de Fátima.
Mas hoje já vai em duas lojas e vende pela internet.
Tenho a noção que ajudei algumas destas marcas a projectarem a sua imagem e a ter outra imagem. Hoje tenho uma relação muito próxima com esses fabricantes. Sei o que vão lançar, trabalhamos em conjunto para fazer lançamentos, tenho produtos exclusivos, às vezes reedições de produtos apenas para revenda, para o estrangeiro. E sim, terei dado uma ajuda, mas não me vejo como salvadora... Mas há um caso...
Qual?
A fábrica Bordalo Pinheiro. Levei esse caso muito a peito. Estava na iminência de fechar [final de 2008, início deste ano] e é verdade que peguei no telefone e liguei a muita gente. Eu e a Joana Vasconcelos [artista plástica]. Estivemos as duas ao telefone durante horas, pagámos do nosso bolso a publicação de um anúncio, uma carta ao primeiro-ministro a pedir que se salvasse a fábrica. Mas ao mesmo tempo, a comissão de trabalhadores também fez todo o seu trabalho e muito bem, falou com outras pessoas. Em conjunto, conseguimos alertar alguma opinião governamental e isso terá sido decisivo para a sua continuação.
A loja do Porto é uma réplica desta em Lisboa?
Não. É uma experiência distinta, é um investimento feito em sociedade com a Ach Brito, um dos meus principais fornecedores. É uma fábrica que considero exemplar na forma como conseguiu pegar no seu património histórico e rentabilizá-lo. E a verdade é que as suas marcas são hoje vendidas em lojas de prestígio do mundo inteiro. Há muitos anos que conheço e falo com os proprietários da fábrica. Espicaçaram-nos para abrir uma loja no Porto e foram uma grande ajuda. Eles próprios calcorrearam a Baixa do Porto comigo à procura do espaço.
A expansão das suas empresas será feita em parceria com eles?
Eventualmente. Acho que esta sociedade tem em vista outros negócios. Podem ser mais lojas cá, no estrangeiro. Vamos ver, ainda estamos a pensar.
Mas sempre com o conceito das marcas antigas?
Sim.
Gostava de exportar o conceito? Uma vida espanhola, uma vida italiana...
Pode acontecer. Quando o projecto estava a começar fui convidada para uma conferência de marketing para apresentar este caso e um especialista inglês que achava incrível como é que ninguém se tinha lembrado disto antes. E, de facto, como é que ninguém se lembrou disto antes?! É que esta ideia pode ser aplicada a qualquer país! Eu não tenciono aplicá-la a qualquer país, mas sei perfeitamente que estes produtos têm um interesse internacional. Já fiz essa experiência com a fábrica Confiança em que levámos produtos a uma feira em Paris e correu muito bem. Vendemos para lojas muito boas.
Quer ser revendedora/exportadora?
Só me interessa fazer isso quando tiver uma gama de produtos exclusivos bastante interessante e mais alargado. Ser mais um intermediário não é uma coisa que interesse às fábricas, nem às lojas.
Faz sentido fazer um franchising?
A Vida Portuguesa pode perfeitamente ser um franchising, mas isso não me interessa neste momento. Quero ter lojas próprias que sejam muito bem pensadas e vividas por mim. É isso que faz a diferença. Não quero lojas de plástico e, sobretudo, quero continuar a ter um controlo muito grande porque acredito que é possível fazer aquilo a que chamo comércio delicado. Comprar produtos que sei como são feitos, respeitar os produtores e artesãos que os fazem, saber apresentar esses produtos e contar uma história e tentar proporcionar uma experiência.
Daí o Chiado e a Baixa do Porto.
Não foi à toa que demorei quase dois anos e meio até encontrar a loja do Porto. Isto não é para abrir em centros comerciais. E acredito que o comércio tem uma missão: Dar vida aos centros históricos.
Têm ainda os Quiosques de Refresco. Quantas pessoas emprega ao todo?
No Natal tenho mais pessoas, mas normalmente são sete empregados aqui em Lisboa, mais cinco no Porto e 22 nos quiosques. Os quiosques, actualmente três em Lisboa [Camões, Príncipe Real e Praça das Flores], resultam desse mesmo processo de investigação do que era tradicional no centro da cidade há muitos anos. E depois foi transformar essa pesquisa em negócio.