quinta-feira, 23 de maio de 2013

A vida em Luiz Pacheco



"Para fazer da minha vida um romance? Ou uma série de textos insólitos que, por simples aglomeração, ergam uma vivência singular, sem veleidades de metáforas, comparações, esquisitices da burocracia literata rotineira?

Creio que sim. E sublinhar em cada um o aspecto grotesco a que me reduziram, conduziram (até aqui, no Barro: vir meter-me na Tribo dos Cospe-Cospe para sobreviver à fome e ao catarro), transformaram. Quase aniquilaram. Ao contrário de quase todos os escribas, estou farto de levar porrada da Vida. Era tempo de virar isso a meu favor. Como?! escrevendo tal-qual. A verdade é que assusta e empolga as pessoas. Não assisti às coisas tremendas que o Malaparte descreve [no romance Kaputt, que Pacheco estava a ler nesta época]; mas assisti e meti-me noutras, caseiras e mesquinhas, mas fora do habitual.

É tempo de gozar um bocado comigo e de mim. Porque só tenho duas saídas: essa, da jocosidade, ou da amargura. Por este caminho, ninguém vem atrás de mim, não se cativa pela choradeira mas pelo humor."

Luiz Pacheco
Diário 1982



Outra das entrevistas que Anabela Mota Ribeiro recuperou para o seu recém-fundado blogue foi a que fez ao autor de "Comunidade":

"Luiz Pacheco envia-me o exemplar 43 do seu último livro, uma compilação de crónicas que escreveu para o «Público», devidamente enfaixado em papel higiénico. Já estávamos no final da entrevista quando acabo por perguntar: «Então para que era o papel higiénico?» O Pacheco responde: «Sabes quanto é que custa cada envelope almofadado? Cento e quinze paus, menina, é quanto custa!».

Desnudado o mistério, abandonámos o quarto com vista para os lençóis dependurados nos estendais. Não estariam ainda acesas todas as luzes. Avança pelo corredor insistindo: «Aqui é onde se morre», e abre a porta de um quarto despojado e vestido de morte. Acompanha-me até à saída desfazendo-se em pormenores corrosivos, exercitando um estilo que desenvolvera pela tarde. Talvez extenuado, talvez prazenteiro.

Lembrou-me um amigo que corria dos funerais para se perder nos desmandos da carne. Para sobrepor o instinto da vida à crueza da morte. Como Pacheco que, na primeira página d’ «O Libertino», convoca a morte sob múltiplas e hipotéticas formas e se entrega a seguir à vida e ao corpo para melhor escapar ao horror da senhora da gadanha.

Foi o mesmo na conversa de uma tarde. Revolveu conversas de alcova, praticou uma inesgotável luxúria mental, estacionou, comovido, mesmo que se não desse conta, numa incontornável velhice. «Porque é que se deve ter pena de uma pessoa que está aqui, que não fala, que não sabe onde está, que se borra e se mija e que já não dá por isso?»

Que sempre o acompanhe a lucidez. E que deus, ou seja lá quem for, o proteja da decrepitude. Palpita-me ser este o seu último voto."

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