"Parece um detalhe mas tenho para mim que a invenção e generalização das malas de viagem com rodas incorporadas é um dos mais importantes e engenhosos feitos dos nossos tempos. Sobretudo para quem gosta de partir para dias de vagar e lazer com uma família alargada de livros, ou seja, possibilidade de escolha consoante o espírito dos dias, entre os livros que nunca se leram, os que se empilham às cabeceiras das camas de cidade mais as curiosidades das novidades, enfim, as tais leituras de férias que podem ser tantas e tão díspares. E porque os livros são tão parecidos com as cerejas para certos devoradores, que sabem que um livro pode levar a outro com urgência desesperada, como resolver o dilema do transporte limitado?
A este propósito, lembro-me sempre do grão vizir citado por Alberto Manguel na sua maravilhosa “Uma História da Leitura”. Conta ele que, no séc. X, o grande bibliófilo e grão vizir da Pérsia de seu nome Abdul Kassem Ismael resolveu de uma genial forma o desejo de companhia da sua biblioteca ao longo das suas deambulações. Falamos de uma biblioteca vasta, atente-se, composta de 117.000 volumes - pois sabe-se lá, de óasis em óasis, os apetites que podem acometer um grão-leitor... Assim, esta colecção era transportada por uma caravana de quatrocentos camelos, especialmente treinados (e este é o pormenor que encanta qualquer maníaco da catalogação de uma biblioteca) para caminharem por ordem alfabética dos volumes que carregavam no dorso.
Dir-me-ão os fãs das novas tecnologias que tudo o que relato já não faz sentido, num tempo em que um aparelhómetro que quase nada pesa pode carregar consigo os livros, quem sabe até os quatrocentos camelos. Mas a esses responderei que não há ecrã que saiba como o papel manchado e sublinhado, a lombada aberta e marcada, um volume muito anos depois reaberto, largando nos dedos alguns grãos de areia fina recordadndo um fim de tarde na praia ou soltando as folhas que marcaram as páginas lidas à sombra de uma árvore. O acto de apropriação de um livro pelo seu leitor é também físico e aí não há e-book que lhe alcance a magia, vos garanto.
Mais aceitável, sem malas de rodas ou sem camelos à mão, é quando muito recorrer às bibliotecas locais, que são hoje muitas e dadas a muitas surpresas. Pois uma biblioteca conta muito da história do seu lugar e do seu povo. A mais inesperada que me foi dada descobrir situava-se em Inhambane, pacata cidade da costa moçambicana. Numa tarde sossegada, acompanhada de muitos jovens estudantes locais, os meus olhos espantaram-se ao percorrerem as prateleiras. Primeiro sucedia-se um vastíssimo lote de obras portuguesas, entre finais do séc. XIX e início do séc. XX, que iam das “Viagens na Minha Terra” até muitas outras obras mais esquecidas, de colecções com nomes delicodoces, e tão absurdamente exóticas nestas paragens. Imediatamente seguidas por outro largo conjunto que abarcava as obras completas de Lenine a Mao, mais uma quantidade infindável de opúsculos revolucionários e anti-coloniais da segunda metade do século passado, exibindo despudoradamente a evolução das influências históricas de uma nação."
Crónica de Catarina Portas para o Público de 14 de Julho de 2007.
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