quarta-feira, 9 de junho de 2010
O milagre lisboeta
"No sábado passado, fui à procissão. Eram cinco horas de uma tarde abafada quando ela saiu da Igreja de Santo António, junto à Sé, e se enfiou pelos “becos, escadinhas, ruas estreitinhas” como canta a Carminho na “Marcha de Alfama”. A abrir o cortejo, para que não haja dúvida que o ano é o de 2009, um casal de agentes fardados nas suas segways, como dois cavaleiros do futuro. Atrás, seis andores e uns milhares de pessoas. Lá vem o Santo António, sobre um jipe dos bombeiros, e mais os seus vizinhos do bairro, carregados em ombros: São Miguel, São João, Santo Estevão, São Vicente e Santiago, imagens antigas e douradas, vindas de cada uma das igrejas do bairro de Alfama. Os pendões agitam-se, acompanhando o som tonitruante e dolente da banda filarmónica, atrás das fardas luzidias o Núncio Apostólico marcha também exibindo nas mãos uma relíquia de Fernando de Bulhões que se fez António em 1220.
Os escuteiros pressurosos tentam manter organizada esta mole humana que, como uma serpente, se estica ou se alarga, consoante as vielas do labirinto branco que é o casario de Alfama. Caminham na procissão alguns pés descalços sobre as pedras da calçada que na noite anterior viram rolar garrafas e derramar cerveja. Hoje, são pétalas que chovem sobre o Santo António, atapetando delicadamente o chão. Com os festões suspensos no ar e as colchas coloridas nas janelas, o bairro parece uma sala rica em dia de festa, engalanada e exuberante. E a gente, é tanta gente e tão concentrada neste gesto. Quem sai à rua nesta dia, a passear com o Santo António? Sai o bairro, claro, que procissão é tradição, e ocorrem devotos da cidade e arredores. Há pobres e ricos, homens e mulheres, muitos velhos e muitos jovens, portugueses ou nem por isso, numa amostragem tão vasta quanto surpreendente nos dias que correm. Trazem velas ou terços nas mãos, um credo no coração ou simplesmente a curiosidade no olhos. Mas lá vão eles, caminhando pela tarde quente, percorrendo o labirinto, repetindo em coro, compenetrados, as palavras “ Santo António de Lisboa, abençoai a nossa cidade” (e também “Santo António de Lisboa abençoai os nossos governantes”).
É diante da Sé, onde desagua toda esta gente, que se alinham os andores e fala o sumo sacerdote da ocasião. No final, quando cada uma das imagens regressa a casa, encaminhando-se para a sua respectiva igreja, também Santo António começa a descer a ladeira. E é nesse momento, quando todos os olhares o seguem, virando-se para baixo e recebendo o sol de frente que acontece o milagre: dezenas de rostos levantados para o sol, lacrimejam, entre silêncio e burburinho. Uma senhora, africana luzidia e exultante, descreve-me o que viu: Santo António no ceú e os anjos todos esvoaçando em seu redor. No ano passado, não conseguira mas neste, sim. A vizinha teve menos sorte, só viu o sol a balouçar, como um barquinho. Talvez para o ano…
Eu, a grande descrente, também vi o milagre. Também lá estava o Santo António, balouçando numa procissão de um outro século a atravessar os meus dias."
Crónica de Catarina Portas para o Público de 20 de Junho de 2009.
O álbum fotográfico da procissão está disponível aqui.
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