sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Avançar às arrecuas

"Eis a ideia, resumida nesta questão: e se o nosso atraso fosse afinal o nosso avanço?

Pois, o nosso atraso. Esse atraso que tanto nos envergonhou, ao longo das últimas décadas. Uma vergonha que se misturou com revolta e nos fez maldizer o país e o regime que mal o governou quase cinco décadas durante as quais a industrialização foi parca e o desenvolvimento minguado. Ai que vergonha e era mesmo. Depois veio a democracia e com ela os dinheiros europeus. Mais educação é certo mas sobretudo mais auto-estradas, como se elas nos levassem até ao futuro radioso. Até à Bela Europa, essa criatura altiva, altamente mecanizada, industrializada, tecnológica, tão sofisticada. Mas nós, saindo da auto-estrada, entrevíamos o país ainda pobre, atrasado e, ai credo, tão antigo produzindo pela manufactura. Logo corríamos, assustados, tendo as cidades para nos sossegar, aí onde nasciam reluzentes e plastificados centros comerciais, este é ainda maior que o outro, isto é que é progresso! Ficamos tão modernos com um carrinho de compras do tamanho de uma banheira num hipermercado que parece um oceano, olha o novo continente que descobrimos. A principal qualidade de um produto de consumo não é ser estrangeiro? Como nós queríamos ser?

E, entretanto. A Velha Europa, essa senhora rica, consome mas já não faz, manda fazer. A países com salários mais em conta, como nós ou seja quem for, tanto faz, no Leste, pela Ásia. Ficam longe, o que é conveniente, é escusado saber quem e como. As marcas avançam, são exércitos à conquista do mundo. País atrás de país, muitos soçobram e regojizam-se. Comunicamos melhor e mais depressa, controla-se melhor o império assim. Globalizados e iguaizinhos, é isto o consumo democrático? Não, não é. As corporações ganharam o poder de estados mas ali só vota quem manda, o CEO chama-se lucro. E por cá, que aconteceu às fábricas, fabriquetas e oficinas, tantas que não conseguem entrar no hipermercado, desculpe senhor espezinhou-me a margem, assim não consigo andar. Esconde o nome e produz para outro até ao dia em que o outro dá de frosques por menos uns cêntimos. Senhor Luís, latoeiro de Barcelos, ensinou o ofício ao filho mas ele tem vergonha do que faz, olha outra vez a vergonha, preferiu ir trabalhar para a construção civil, depois caiu do andaime e morreu. Alguns sobrevivem, há para aí ainda quem encontre lojas, chamam-se agora comércio tradicional, tratam-no como uma relíquia, pois cada vez mais não se encontram.

O estado das coisas hoje. Citando o escritor David Foster Wallace, “as pessoas tendem a ser muito semelhantes nos seus interesses vulgares, lúbricos e patetas e bastante diferentes nos seus interesses sofisticados, estéticos e nobres”. Por isso, repegando Chris Anderson, que analisou os números das grandes lojas on-line, “o futuro é vender menos de mais produtos”, ou seja, descobrimos que se faz tanto dinheiro a vender o muito que não é um hit como a vender os raros blockbusters. Eis a grande novidade: os nichos tornaram-se globais e por isso rentáveis. No maior centro comercial do mundo, que está afinal no ecran do nosso computador pessoal, é tão fácil cada um de nós vender como simplesmente comunicar para ao mundo inteiro uma loja física e especializada. Pois também percebemos, diante da igualização, que somos todos diferentes. Alguém profere o neologismo que fazia falta: glocal. O local também se pode tornar global. E o local, ainda existe? A Rachel e o Simon vestem aventais na sua loja em Londres, a Labour and Wait, vendem artefactos domésticos clássicos e particulares mas fornecedores já mal os encontram no seu país, “em Inglaterra já não se produz nada”. A Alisa e o Marcus atendem na Spring Street, em Nova Iorque mas é sobretudo na net que a Kiosk vende o que eles encontram quando calcorreiam o mundo: de país em país, procuram os pequenos objectos da vida diária, com história e estórias, que caracterizam os habitantes daquela terra, daquela cultura. Quando chegaram a Portugal, nunca mais queriam de cá sair. Alguém emprega uma nova palavra: desglobalização. O exótico tornou-se tão familiar. E se o exótico fôssemos nós?

O avanço. Porque nos atrasámos, ainda produzimos. Objectos feitos com alma e saber, produtos com graça e peculiaridade, saem de oficinas, fábricas pequenas ou maiores. Isso que um dia a Europa soube fazer mas já quase não sabe. Mas ainda há quem deles goste, aqui, ali, pelo mundo fora. Coisas especiais para pessoas especiais. Esta manufactura que nos envergonhava pode ser agora, neste novo mundo, um orgulho? Sim, se sobreviver. Sim, se souber transmitir modos de fazer e ser exigente no aperfeiçoamento do produto, respeitando as características da sua diferença. Sim, se souber comunicar uma história, de onde veio e como é. Sim, se souber encontrar o seu mercado. Pode ser um mercado que se compraz na tradição mas também um mercado que se entusiasma com a inovação. É por isto, justamente, que a Alisa quer voltar a Portugal: “de todos os países que conheci, este é aquele onde me parece mais fácil e viável, neste momento, construir um diálogo design de autor/manufactura”. Tudo isto será difícil mas não é impossível.

Repetimos a ideia sem pergunta: o nosso atraso pode ser o nosso avanço. Afinal, talvez não seja uma ideia perigosa mas apenas uma ideia esperta."

Catarina Portas, jornalista e hoje empresária (A Vida Portuguesa / Quiosque de Refresco).

2 comentários:

NUNO DE NORONHA disse...

MUITO BOM O TEXTO. SEREI UM FAN DA CATARINA. BONITA, INTELIGENTE E EMPREENDEDORA.

portugalnocoração disse...

Catarina, andámos juntas no Helen Keller e depois cada uma seguiu o seu caminho.
Tão verdade! onde vivo o mercado semanal é procurado não só pelos locais mas também pela enorme comunidade de expatriados que desceram ao sul à procura do sol. E ninguém se importa se as mesmas mãos que dão o pão são as mesmas que a seguir te dão o troco. o esforço da comunidade local é enorme para a preservação de tudo o que é típico da região e o sucesso é garantido. o mesmo se pode fazer aí!