quarta-feira, 19 de dezembro de 2012
A maravilhosa arca do passado
"(...) eu tinha um projecto a concurso, e estava à espera de conseguir apoios para fazer um filme-documentário. Às tantas as coisas foram acontecendo, tornou-se uma bola de neve e houve uma altura em que eu decidi de facto investir nisso. Era uma coisa que eu desconhecia, e eu adoro desafios impossíveis e aquilo parecia-me bastante impossível para mim na altura (abrir uma loja), portanto essa parte satisfazia-me (risos). Depois, por outro lado, comecei a apaixonar-me completamente pelo mundo que estava a descobrir e que era o mundo das marcas antigas e das fábricas e das pessoas, às vezes gerações atrás de gerações, que mantiveram uma fábrica, uma marca, um produto. É uma coisa que é muito difícil e hoje em dia eu tenho uma admiração gigantesca, um enorme reconhecimento, por estas pessoas que de facto lutam, conseguem continuar a manter empregos e a sustentar também um pouco da economia deste país. (...)
A pesquisa é a alma do negócio. É também uma das coisas que me dá mais gozo fazer, adoro visitar fábricas, eu não sabia, mas acho que é mesmo uma das coisas que mais gosto na vida, é visitar fábricas e perceber como é que as coisas se fazem. Nós perdemos tanto o contacto com a realidade na nossa vida hoje em dia, será que nós sabemos como é que se faz uma colher, um prato, temos ideias bastante vagas sobre isso geralmente, mas as coisas são concretas e as coisas são feitas por pessoas. Por exemplo, o tapete que está na minha sala, eu sei quem foi a pessoa que o fez, ou muitas das coisas que eu uso eu sei quem foram as pessoas que fizeram, que embalaram, eu vejo a cara delas, e isso é toda uma outra relação que passamos a ter com o consumo, e que eu acho que é uma relação muito mais saudável, e que sobretudo conduz ou pode conduzir a um mundo muito mais interessante e também mais saudável. Se nós fossemos capazes de, quando compramos um objecto ver a cara de quem o fez, se quando compramos uma t-shirt que custa €3, virmos porque é que ela custa €3, quem é que a fez e quanto é que ela recebeu por isso, o mundo seria muito diferente, não tenho dúvida nenhuma sobre isso. (...)
As histórias dos produtos contam coisas fascinantes. A história do consumo também conta a história de um país, muitas das empresas da marca que nós vendemos já existem antes do Salazar subir ao poder e continuam a existir depois do 25 de Abril, ou depois de o Salazar deixar o poder. E portanto, muitas delas foram-se adaptando, os gostos das pessoas também mudaram. Costumo dar este exemplo dos rótulos dos sabonetes que eu acho que é muito eloquente: uma fábrica como a Confiança tanto fez o sabonete da exposição do mundo português, em 1940 - foi a grande exposição do regime fascista -, como fez o sabonete Grândola Vila Morena, em 1975, portanto é de facto quase possível contar a história do país através de rótulos de sabonetes de uma fábrica e de gostos. Nos anos 10 ou 20, a influência francesa culturalmente era gigantesca, os sabonetes eram todos rotulados em francês, porque senão não eram chiques, aí já evoluímos um bocadinho(risos) mas continuamos a gostar muito de produtos estrangeiros. Acho que isso está a mudar felizmente, porque a nossa economia bem precisa disso. (...)
Não acho que devemos viver no passado, mas acho que também não o devemos esquecer, faz parte de nós. Mas o futuro também me interessa muito, atenção (risos). O que é interessante é que muitas coisas já foram feitas, nós não estamos sempre a inventar a roda, há coisas que eram boas, que foram bem feitas ao longo do tempo, se calhar podemos pegar nelas e continuar essa evolução, adaptá-la ao mundo e às necessidades de hoje. Portanto, eu acho que o passado é uma maravilhosa arca onde ir pilhar ideias para o futuro. (...)
Nós já não temos a mesma fé no futuro que tinham os nossos pais e os nossos avós. Normalmente, em alturas de crise o que acontece geralmente é que as pessoas tendem a refugiar-se em coisas seguras, e o passado é seguro, o futuro não sabemos como é que vai ser, mas o passado nós controlamos. Portanto, normalmente essa é uma tendência que se verifica sempre em alturas de crise e recessão. Mas eu na altura peguei nisso não de todo por uma atitude saudosista. (...) para mim estes produtos são uma questão de identidade e não de todo uma questão de saudade, eu não gosto deles porque eles são velhos, eu gosto deles porque eles são bons, e são bons porque existem há não sei quantos anos, e que houve não sei quantas pessoas a tentá-los fazer bons, aliás senão não tinham resistido estes anos todos no mercado, como é óbvio."
Catarina Portas em entrevista à revista MAXIM, Dezembro 2012.
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