"Luxo pode ser ter dinheiro para jóias ou grandes marcas. Mas também
pode ser ter tempo. Um estilo de vida humanizado. Um ambiente onde se
respira autenticidade. Estabelecer uma relação afectiva com o que se
consome. Acreditar na memória como forma de projectar o futuro. E
privilegiar as ligações tangíveis ou as relações de proximidade.
“A nova definição de luxo não é grandes marcas,
semelhantes em todo o lado, mas a autenticidade, a história, a memória,
porque é isso que atrai as pessoas às cidades”, arriscou o director da Monocle, Tyler Brûle, este sábado, em Lisboa, na primeira conferência internacional desta revista de tendências.
O
ideal contemporâneo de qualidade de vida, de lazer, de consumo cultural
ou de sociabilização que emite a influente revista britânica de impacto
global passa por aí. Não surpreende, por isso, que para a conferência (The Monocle Quality Of Life)
tenha escolhido um painel que revelou personalidades, projectos e
práticas de todo o mundo, que acabam por atribuir sentido a essas
propriedades.
Também não espantou a escolha de Lisboa. Por um
lado, é a 9ª cidade do mundo onde a revista tem mais leitores e, por
outro, a conferência, que aconteceu no hotel Ritz, teve o apoio da
Secretaria de Estado do Turismo.
Para além de jornalistas,
estiveram presentes mais de 150 delegados, dos EUA, Japão, Austrália e
Europa, entre empresários, políticos, designers ou arquitectos, a
maioria representando empresas ou instituições que para fazerem parte da
experiência Monocle, durante três dias, desembolsaram 1.500 euros. “É muito? Depende da perspectiva”, diz-nos o búlgaro Ivan Koleliev, manager
numa empresa global de consultoria, sediada no Canadá, ligada a
projectos científicos. “Não é apenas o conhecimento, é também a
interacção ou as novas cooperações, ou seja, isto é também um
investimento.”
Durante a manhã de sábado, nos diferentes painéis,
os desafios do digital estiveram em evidência. Quando se discutiram os
meios de comunicação, por exemplo. O jornalista holandês Hans Nijenhuis,
do grupo de média NRC, defendeu a proximidade com os leitores, dizendo
não perceber a tendência para as redacções se afastarem dos centros das
cidades.
“Os jornalistas têm de estar no meio das pessoas”, disse,
exemplificando que o NRC tem o seu refeitório aberto ao público,
possibilitando a interacção com os jornalistas, e realiza regularmente
no seu espaço encontros, palestras e debates.
No núcleo da maior
parte das intervenções esteve a noção de “marca”, essa ideia de que é
possível uma publicação estar agregada a produtos ou acontecimentos se
tiver qualidade e credibilidade. “Um bom exemplo é este evento, o futuro
passa por aqui, pelas experiências”, atirou o americano Andrew Keen,
que acabou de editar o livro The Internet Is Not The Answer, lembrando a história de sucesso da Monocle
que, para além de revista, é também estação de rádio, cafés, lojas,
dois jornais semestrais, livros e agora também uma conferência.
O
tipógrafo e designer alemão Erik Spiekermann também defendeu que as
publicações têm de se reinventar fora do digital, dizendo que o modelo
de negócio gratuito não funciona. “A Internet é infinita, o que é
fantástico, mas as pessoas precisam de coisas que têm fim. Os jornais
são isso. É preciso seleccionar”, concordou Hans Nijenhuis.
“Se
dermos às pessoas apenas o que elas querem, sem irmos mais além, fazendo
um jornalismo de contabilização de cliques da Internet, qualquer dia só
publicamos vídeos de gatos”, ironizou Andrew Keen, comparando o
regresso do vinil – no campo da música – à reacção que prevê virá a
acontecer com os jornais.
“Irá haver uma reacção dos nativos
digitais”, disse, acrescentando que é errado achar que os jovens não
lêem artigos longos. “Todos queremos qualidade e boas histórias, de
preferência inclusivas, onde nos possamos rever, para além da questão
das idades”, concluiu Dorthe Riis, da TV dinamarquesa.
Os mesmos
conceitos estiveram na base do painel seguinte, onde o ponto de partida
era: “Como construir a casa perfeita”, em cidades que se querem
inclusivas e dinâmicas. O arquitecto brasileiro Isay Weinfeld disse que
tudo passa “por ouvir o cliente e respeitá-lo”, enquanto a designer e
directora criativa inglesa Ilse Crawford, conhecida por criar “espaços
públicos onde as pessoas se sentem em casa”, defendeu que as habitações
têm de ser pensadas realmente para serem vividas.
“Qualidade de
vida é escala humana, densidade, maximizar de forma integrada pequenos
espaços e olhar os problemas de forma humana, em conjunto com os
clientes, criando infra-estruturas inteiras, mas que guardem espaço para
a mudança”, defendeu o arquitecto de São Paulo, alegando que a ideia
futurista de “casa inteligente” já faz parte do presente, mas não é isso
que é decisivo. “O digital está lá, faz parte da casa, mas a sua
concepção não deve estar subordinada a esse facto.”
O sueco Oscar
Engelbert, que constrói e vende habitações, argumentou que, para além da
qualidade, o que acaba por criar mais-valia e apetência no comprador é a
memória do edifício.
Como num museu. “Porque é que em plena idade
digital as pessoas vão mais do que nunca a museus? Porque querem
autenticidade e qualidade. Querem o que apenas podem ver nos museus. Há
uns anos os museus assustaram-se com a idade digital. Mas a ‘grande
arte’ é sempre contemporânea”, afirmou o director do museu londrino
Victoria and Albert, o inglês Martin Roth, no painel onde se falou do
papel da cultura nas cidades, em particular os museus.
“Quanto
mais digitais somos, mais queremos a experiência da coisa autêntica",
afirmou o historiador de arte Taco Dibbits, do Rijksmuseum da Holanda,
secundado pelo director do Museu Palestino, Jack Persekian: “as pessoas
querem sentir de forma tangível. Querem tocar. Querem sentir que
pertencem e têm desejo de partilhar essa sensação de pertença com
outras.”
Falou-se também de identidades, claro. Em países
estabelecidos, como a Inglaterra ou a Holanda, "as colecções pertencem
ao mundo, deve existir partilha da memória", analisou Martin Roth. No
caso palestino, "olha-se mais o futuro", expôs Persekian, acrescentando
que é uma responsabilidade pensar “como é que um museu pode definir uma
nação.”
De preservação também se falou a propósito do regresso dos
fazedores, dos artífices, das técnicas e dos saberes que nas últimas
décadas se foram tornando raras e que agora é possível aplicar em novos
contextos. O galês David Hieatt fundou uma companhia de jeans com
operários de uma antiga fábrica, iniciando um bem-sucedido processo de
reconversão: “Não é apenas o produto final que interessa, é também o
processo. Em causa está um saber que se iria perder e que é garantia de
qualidade e distinção, ao mesmo tempo que também existe uma história, a
daquela fábrica e das suas pessoas, que deve ser valorizada.”
Dessa
possibilidade de juntar pessoas, às vezes antagonistas, à volta de um
projecto que as desloca do conflito, falou o libanês Kamal Mouzawak,
responsável por um mercado em Beirute que agrega tradições e
agricultores de pequena escala. “Make food, not war”, brincou ele,
falando da possibilidade de aproximar comunidades à volta do mesmo
objectivo.
Catarina Portas, fundadora de A Vida Portuguesa,
salientou que alguns países sabem comunicar o que têm para vender, “mas
deixaram de saber fazer”, porque não têm apostado na “transmissão do
saber, com memória, com diferença, com identidade.” É preciso uma outra
forma de olhar para as coisas, “mais tangível”, disse, lamentando que
não exista muita consciência dessa riqueza e herança, aqui.
Foi aí que Tyler Brûle
argumentou que Portugal era um país que “fazia sentido”, porque reunia
as características ali nomeadas por quase todos. “Autenticidade,
memória, sentido de lugar.”
Um luxo, portanto. O que falta para o activar? Longa conversa."
Vítor Belanciano, Público
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