segunda-feira, 8 de julho de 2013

Comércio Delicado no TEDxO'Porto 2013



Nos dias que correm, andamos todos muito apoquentados com o que acontece politicamente, com a forma como a crise que vivemos tornou cada vez mais visível a importância que a economia tem nas nossas vida e como ela controla o nosso mundo. Ora, nós, para mudarmos as coisas politicamente, manifestamo-nos e vamos votar. Mas também temos forma de mudar as coisas economicamente. Cada vez que vamos às compras podemos mudar o mundo para um mundo melhor. Ou seja, consumir é um acto político que nós praticamos todos os dias.

Nada disto é novo. Nos anos 20, quando a Índia ainda era colonizada pelos ingleses, Gandhi aderiu ao movimento Swadeshi, que pedia aos indianos que mudassem a sua forma de vestir. Porque eles produziam algodão que ia ser fiado e transformado em tecido e em roupa na Inglaterra e que depois era revendido outra vez aos indianos. Os indianos produziam e compravam mas quem ficava com o dinheiro eram os ingleses. E foi isso que Gandhi fez, apelando aos indianos para mudarem.

Hoje em dia, olhando para o mundo à nossa volta, qual é a escolha disponível que temos quando vamos às compras? Temos o herói das últimas décadas, que é o centro comercial. Cresceu não no centro histórico mas na periferia, com uma área monumental. Um dos seus requisitos é o automóvel (...). Passeamos em ruas de luz artificial em corredortes climatizados. Ou seja, basicamente, pensamos como se não houvesse amanhã e não vivessemos num mundo de matérias-primas finitas. Digamos que estes centros comerciais que nos habituámos a olhar como algo de extraordinário, eu não tenho grandes dúvidas, serão, estes mastodontes, os dinossauros do futuro.
Para além disso, temos o hipermercado (ou as lojas de bairro obsessivas da mesma marca, onde vamos comprar a carne, a fruta, o peixe, a drogaria...). E hoje em dia há duas marcas em Portugal que concentram entre si 70% da grande distribuição alimentar. Isto quer dizer que elas detêm um poder de vida e de morte sobre os seus fornecedores. Este sistema determina a morte do produtor em pequena escala e permite também bastante desrespeito e alguma chantagem na relação com o produtor. Os produtos brancos que consumimos hoje em dia custam menos uns cêntimos, é certo, mas este anonimato quer dizer que não sabemos quem os produziu, como foram produzidos, onde foram produzidos.

Ora, é importante termos esta informação sobre as coisas porque, quando somos consumidores informados, nós sabemos a quem é que estamos a dar o nosso dinheiro. Eu conheço aquela empresa que faz papel higiénico, sei onde é que eles funcionam, sei como é que eles tratam o rio que passa pela fábrica deles. Sei quais são as condições de trabalho naquela fábrica, são 40 horas não são 60, as pessoas têm direito a um subsídio de férias e a um subsídio de Natal, que noutras partes do mundo não têm. Hoje começamos a ter muita consciência disto e ainda bem.

Depois temos outra escolha ainda, que é o retalho obsessivo. Mesmo ao lado da minha loja em Lisboa está a loja de um criador americano, de que eu gosto aliás, e que também tem uma loja ao pé da minha do Porto, mesmo na esquina de baixo. No outro dia fui a Nova Iorque, saí à rua e deparei com três lojas do mesmo criador americano. E dei por mim a pensar: "mas porque é que eu atravessei um oceano?" Ora, este retalho obsessivo está a fazer com que as cidades do mundo inteiro fiquem todas iguais. Ou seja, basicamente, vamos passar a ter centros históricos, centros de cidades, absolutamente monótonos.
As coisas são produzidas para milhares de lojas do mundo. Têm que ser produzidas em grande escala, que está cada vez mais protegida sob o anonimato. Aqui há uns tempos aconteceu uma história muito engraçada. Alguém em Inglaterra comprou um i-phone, que normalmente vem vazio, abre, vai às fotografias e encontra uma rapariga vestida com uma bata branca, que se fotografou a si e aos seus colegas na linha de montagem e que deixou ficar as fotografias dentro do i-phone. A empresa entrou em pânico, as pessoas foram investigar a Foxconn que produz o telemóvel, as suas condições de trabalho... Mas dei por mim a pensar uma coisa: "se os produtos que nós compramos viessem com a fotografia de quem os fez, eu tenho a certeza de que nós viveríamos num mundo melhor."

Eu acredito que existe uma alternativa a esta forma de consumo em geral. E essa alternativa chama-se "Comércio delicado".         

Este Comércio Delicado vai buscar ao passado do retalho mas também ao futuro, e a sua fusão pode fazer melhores cidades e transformar as nossas vidas para melhor. Contra a massificação, o comércio delicado defende a originalidade. Eu posso defender o local e comprar produtos locais. Insistir em comprar produtos locais não é uma questão de nacionalismo. Eu gosto do meu local e eu gosto do teu local. A isto chama-se cosmopolitismo. Por exemplo, no Chiado existe uma loja de três metros quadrados, é a Luvaria Ulisses, vende apenas luvas. Lisboa tornou-se um destino turístico nos nossos dias e cada vez há mais turistas. Ora, a maior parte das reportagens sobre Lisboa, 50% delas pelo menos, traz uma fotografia da Luvaria Ulisses. Do outro lado da rua está a H&M, que tem milhares de metros quadrados, mas eu nunca vi nenhuma reportagem sobre Lisboa que trouxesse uma fotografia da H&M.

Contra a generalização, o comércio local procura a especialidade. Uma vez, em Paris, Italo Calvino escreveu sobre lojas de queijos: "se eu quiser escrever sobre queijos, eu não vou consultar uma enciclopédia, eu vou a uma loja de queijos em Paris, que é uma enciclopédia". E esta função, esta dimensão cultural do retalho especializado é muito interessante. No Porto, por exemplo, na Rua do Almada, há coisas que são praticamente impossíveis de encontrar na maior parte das cidades da Europa dos nossos dias. Essa é uma riqueza da cidade e é a partir daí que podemos olhar para o comércio que começa aí mas quer alcançar uma maior dimensão. Porque hoje em dia nós temos acesso, graças aos novos meios de comunicação, graças à internet, àquilo que chamamos os nichos globais. Há maluquinhos para todos os gostos. Há quem só goste de camisolas azuis ou lápis com um formato estranho. Só há dois ou três maluquinhos destes numa cidade mas se juntarmos os que há pelo mundo fora, vamos ter um mercado. Foi o que descobriram as grandes lojas agregadoras de pequenas lojas na internet. Há um senhor, Ian Anderson, que escreveu muito bem sobre isso, num livro chamado A Cauda Longa. Ele chegou à conclusão que existe uma enorme "cauda longa" constituída pelas pessoas que compram pouca coisa mas que são milhões e milhões e milhões, que compram tanto como as que compram os bestsellers.

Outra coisa que o Comércio Delicado pode fazer e deve fazer é a valorização do produto. Dar a conhecer um produto, como é que ele é feito, quem o faz, a sua história. Isso valoriza um produto. A pessoa nunca mais olhará para aquele novelo de lã ou para aquele caderno da mesma forma. E isso também faz com que na primeira ocasião não descartemos as coisas como se elas não fossem nada. Ou seja, evitar um desperdício pode ser uma boa consequência de valorizar um produto. E isso é uma coisa que hoje em dia faz imenso sentido. Vivemos num mundo que consome excessivamente e não tem meios para tal.

O Comércio Delicado é um retalho que está atento à manufactura. Nos últimos 30 anos, em Portugal, a manufactura foi extremamente desprezada. O saber fazer das mãos era conotado com um passado de pobreza. Mas o que nos dizem os dias de hoje é que esse nosso atraso pode ser o nosso avanço. Essa manufactura desapareceu, por exemplo, na Europa em quase todo o lado. Nós ainda temos resquícios disso, e temos um enorme desafio à nossa frente, que é passar esse conhecimento, encontrar herdeiros para esse conhecimento, porque ele hoje tem um mercado. Há que pensar que muitas vezes a modernidade não significa novidade. Modernidade tem a ver com saber olhar, com outra atitude.  

O Comércio Delicado também tem muitas outras coisas interessantes e eu acho que ele pode, por exemplo, tratar os fornecedores como parceiros, são pessoas que se conhecem, e ao invés de multiplicar obsessivamente, criar redes com outros parceiros semelhantes. Há por isso todos os dias coisas que nós podemos fazer quando vamos comprar o jantar, uma camisola, algo, um caderno, que precisamos. Quando forem às compras lembrem-se do Gandhi. Foi ele que disse "sejam a mudança que querem ser no mundo". Comprem bem.

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