"Primeiro, um hotel rural. Agora, um aparthotel e um hammam na fazenda de São Bartolomeu, em Castro Marim. Em qualquer caso, um lugar com todas as suas vidas, cheiros e sabores.
Um lugar único, o Algarve d’aquém e de além-mar. Quem se sentar com o poeta Francisco Palma-Dias ouvirá logo falar nas maravilhas resultantes da fusão dos climas continental, mediterrânico e atlântico e de séculos e séculos de relações entre povos, sobretudo com os do outro lado do mar.
Conheci-o, já lá vão uns anos, a discorrer sobre os coentros como marca distintiva do Sul, a fazer o elogio da laranja do Algarve, do sal de Castro Marim, da batata-doce de Aljezur, da conquilha da baía de Monte Gordo, do pão de côdea rija do alto Algarve e do Alentejo, do porco preto que cresce no montado, alimentando-se da bolota que vai caindo do sobreiro e da azinheira.
Não diz que é “o quinto império dos sabores”. Diz que ali, naquele finalzinho de Europa, há uma conjugação única que dá origem a produtos de grande qualidade, como o azeite Monterosa, produzido por Detlev von Rosen, nas quintas de Moncarapacho, em Olhão. “Afirmá-lo não é ser paranóico, não é ser nacionalista, é ver o lado em que estamos, a cultura que nos caiu em cima, dar conta do que existe”, defende.
Um lugar único, o Algarve d’aquém e de além-mar. Quem se sentar com o poeta Francisco Palma-Dias ouvirá logo falar nas maravilhas resultantes da fusão dos climas continental, mediterrânico e atlântico e de séculos e séculos de relações entre povos, sobretudo com os do outro lado do mar.
Conheci-o, já lá vão uns anos, a discorrer sobre os coentros como marca distintiva do Sul, a fazer o elogio da laranja do Algarve, do sal de Castro Marim, da batata-doce de Aljezur, da conquilha da baía de Monte Gordo, do pão de côdea rija do alto Algarve e do Alentejo, do porco preto que cresce no montado, alimentando-se da bolota que vai caindo do sobreiro e da azinheira.
Não diz que é “o quinto império dos sabores”. Diz que ali, naquele finalzinho de Europa, há uma conjugação única que dá origem a produtos de grande qualidade, como o azeite Monterosa, produzido por Detlev von Rosen, nas quintas de Moncarapacho, em Olhão. “Afirmá-lo não é ser paranóico, não é ser nacionalista, é ver o lado em que estamos, a cultura que nos caiu em cima, dar conta do que existe”, defende.
Não sonhou com um turismo rural. Andou em muitos lados. Regressou há 21 anos. A fazenda de São Bartolomeu, em Castro Marim, tem dois núcleos e um deles estava em ruínas. Ele e a nova mulher, a antropóloga Eglantina Monteiro, começaram a pensar num modo de dar sentido àquilo tudo. São sete gerações de uma família vinda da Catalunha quando era intensa a actividade na costa algarvia — a extracção de sal, a pesca da sardinha e do atum, a indústria da conserva. “O património passa por nós, não é nosso”, costuma dizer ela. “Já cá estava e há-de cá estar.”
Demoraram dez anos a idealizar e a concretizar essa espécie de celebração do lugar que é a Companhia das Culturas. Abriram-na há sete anos como hotel rural. Agora, acrescentaram-lhe um aparthotel e um hammam.
O aparthotel era só uma forma de diversificar a oferta, mas o hammam era uma resposta ao radicalismo religioso, que há tanto fez desaparecer aqueles banhos da Península Ibérica — primeiro do lado de lá, por acção dos Reis Católicos, depois do lado de cá, como consequência da Inquisição — e que está outra vez a propagar-se, ainda que noutros moldes, como uma praga impossível de erradicar.
Francisco e Eglantina tinham-no dito. Gostam de lembrar que as relações entre os povos dos dois lados do Mediterrâneo são fortes desde a Pré-História, embora nunca o tivessem sido tanto como quando a Península Ibérica e o Magrebe estiveram sob o mesmo domínio, o chamado período islâmico. E gostam de chamar a atenção para o quanto isso influenciou o lugar.
Tinha de ir ver. Tentaria perceber o que resta do período islâmico no Sotavento Algarvio e descansaria. Várias vezes procurei e encontrei a dose certa de silêncio na fazenda de 40 hectares de pinheiro manso, sobreiro, alfarrobeira, figueira, damasqueiro, laranjeira, oliveira, a um quilómetro e meio da praia Verde, a quatro da vila de Castro Marim, a seis da ria Formosa, de que Francisco tanto gaba a amêijoa, a ostra, o lingueirão.
Em tardes de distensão, já me entretive a adivinhar as vidas passadas de cada uma das divisões. A sala de pequenos-almoços/almoços/jantares foi a casa da cortiça e do mel. A sala-de-estar/biblioteca foi lagar de azeite. A sala de ioga, tai-chi ou qi-cong costumava ser a garagem da debulhadora. E os nove quartos serviram de abrigo ao fazendeiro ou ao caseiro ou aos animais.
“O nosso processo não é de construção, é de recuperação de ruínas”, gosta de explicar Eglantina. A frase também vale para os quatro apartamentos, situados no outro núcleo da fazenda, o que serve de habitação ao casal: já foram um ovil e um lagar de azeite. E neles, como no resto, prevalece a cal, o cimento afagado, a cortiça.
Nada parece ficar ao acaso. Tirando as camas, todo o mobiliário resulta de processos de recuperação com materiais locais, como madeira, cana, palma, junco. Há evidente repúdio pela produção desenfreada, pela cultura do descartável. “Em vez de ter coisas novas, é ter uma nova utilização das coisas”, diz Eglantina. Mistura as épocas e os estilos. “Isso é que é ser contemporâneo”, enfatiza. Acha que tudo se torna mais acolhedor se tiver passado — se tiver vários passados.
A transformação de mobiliário antigo faz-se na fazenda, mas não se comercializa, pelo menos por enquanto. O que já se começou a comercializar foram as compotas, os vinagres e os chutneys feitos com frutos da fazenda. Em breve haverá uma pequena loja, na zona da recepção, com produtos da quinta e de manufacturas de várias zonas do país, que ela vai descobrindo.
“As coisas têm acontecido à medida que nós vamos querendo responder às expectativas que as pessoas têm dentro do que é a nossa ideia de acolher”, resume Eglantina. “O que é acolher? Disponibilizar, dar o que é do lugar.”
A paisagem serve-se à mesa. Desde logo, sob a forma de ervas aromáticas, como o tomilho ou o funcho que crescem livres no barrocal, e de chás, sumos e compotas feitos com o que a fazenda vai produzindo. O resto vem de pequenos proprietários que vivem perto. A muxama, por exemplo, vem de uma unidade de transformação de peixe especializada em secos e salgados, como a estupeta, o sangacho, as ovas prensadas, os rabinhos, a espinheta ou as anchovas de biqueira, que Dâmaso Nascimento mantém a funcionar em Vila Real de Santo António.
A lógica vale para os petiscos, almoços e jantares. O menu respeita o ciclo das plantas silvestres, que ali vão do espargo à beldroega. Pedro Beleza, o chef, usa o conceito de dieta portuguesa, que tanto discute com Francisco. Funde a cozinha mediterrânica, tão devedora do pão, do azeite, do vinho, com os peixes do Atlântico e acrescenta-lhe as carnes da serra. “Pensei nos recursos que a fazenda tem, nos pescadores da baía de Montegordo, nos produtores de porco de montado, de um modo de mostrar o que temos de melhor a menos de cem quilómetros.”
Fazendo sentido, também usa produtos vindos de longe, como os couscous, de influência árabe, cuja produção continua em Trás-os-Montes e na Madeira. “Talvez para o ano comece a produzi-los aqui”, diz ele. “Quando cheguei, havia imenso albricoque em calda. Comecei a fazer vinagre. Estou a usá-lo para marinar carne.”
Usa a comida para despertar a curiosidade dos clientes. Faz, por exemplo, mormos de atum, julgando que isso lhes dá oportunidade de perceber que foi intensa a actividade na costa algarvia. O atum, que atravessava aquelas águas duas vezes por ano, desviou-se, a indústria definhou, mas o hábito de comer mormos ficou do tempo em que o peixe abundava e era desmanchado ali.
Está visto: a Companhia das Culturas emerge como pequena unidade de desenvolvimento local. Francisco lê, medita, apura receitas com plantas comestíveis. E Eglantina anda de um lado pra o outro, a ver se está tudo no ponto. “Eu sou a fazedora, mas isto é uma coisa muito pensada pelos dois”, diz ela. Ele está com 72 anos, ela com 59. “Nós, em determinada idade, achamos que vamos mudar o mundo. Nesta fase, já só queremos arranjar um pedacinho de ‘calçada’.” Estão a arranjá-la.
Um hammam a semear estrelas
A novidade do momento: a Companhia das Culturas, em Castro Marim, acaba de abrir um hammam. Tem um interesse económico. A antropóloga Eglantina Monteiro é a primeira a dizê-lo: “Estão na moda os spas.” Pode reforçar a marca como lugar de retiro. Mas há também uma vontade de convocar uma memória.
Pouco escapou à fúria do sismo que em 1755 foi seguido de um maremoto — e ao hábito de construir sobre o construído. De qualquer modo, não era ali que estavam os centros de poder de Al-Andalus. O Gharb al-Andalus foi uma região periférica. Não teria a arquitectura que se vê noutros lados.
Do período islâmico, no Sotavento algarvio dir-se-ia que quase só sobrevivem algumas construções cilíndricas de alvenaria, que serviriam de habitação, e ainda menos estruturas defensivas, mas não. “As marcas estão nos pormenores, no pomar, na casa, na intimidade, nas formas de estar”, observa Eglantina Monteiro. “Esta paisagem, a que muitos chamam natural, é profundamente cultural. Tem muitas heranças, inclusive a árabe, que introduziu aqui o pomar de sequeiro, com pequenas almoinhas, pequenos oásis, onde passa um pego de água.”
Numa linha de purificação do corpo, o profeta Maomé estimulou os banhos a vapor. Os árabes não se puseram a inventar, garante o arqueólogo Cláudio Torres, presidente do Campo Arqueológico de Mértola. Fizeram versões dos banhos greco-romanos. Adaptaram-se, conforme os climas e as águas.
O hammam clássico começa com um momento de relaxamento e transpiração — primeiro numa sala quente, depois noutra ainda mais quente. Entrando na sala de vapor, a pessoa deita-se numa mesa de mármore e é ensaboada e esfoliada, com luva de crina de cavalo. Segue então para a zona de arrefecimento.
Cada terra teria um número de banhos públicos ajustado à dimensão da população. Uma terra como Mértola teria só uns no largo principal da vila, exemplifica Cláudio Torres. “Temos zonas de continuidade, que ficaram sempre, mas os banhos públicos, com esta linguagem, desapareceram da arquitectura tradicional. Sofreu uma repressão com a Inquisição.”
O uso de banhos públicos e de termas era reprovado pela Igreja Católica, que os encarava como locais de preguiça e vaidade. Era muito mal visto ir a umas termas ou a um hammam. Propagou-se então a ideia de que tomar banho era mau para a saúde. Os banhos frequentes só voltaram em força à Europa quando a razão e a ciência se sobrepuseram às crenças e aos mitos.
A Companhia das Culturas quis recuperar a tal dimensão de purificação do corpo. “Optámos por uma arquitectura contemporânea que reporta à arquitectura dos hammans”, sublinha Eglantina Monteiro. “O que nos interessa é dialogar, entender, adaptar a uma dimensão contemporânea.”
A estrutura oval — a água escorre pela parede, não pinga — destaca-se do conjunto de apartamentos. Tem uma espécie de furos que saem do tecto. “Agrada-me o hammam com uma dimensão de luz”, diz ela. A luz faz desenhos nas paredes. “É uma dissertação sobre a arte de semear estrelas.”
A grande preocupação dela e do marido, Francisco Palma-Dias, é conhecer, entender o lugar, o ecossistema, e articularem-se com ele. Muitos dos óleos essenciais que usam no hammam provêm da Herdade de Vale Côvo, no Parque Natural do Vale do Guadiana, Mértola. É lá que François Goris destila ervas aromática que nascem livremente pela serra – alecrim, esteva, rosmaninho…"
Companhia das Culturas
Rua Jacinto Celorico Palma, 8950 Castro Marim
Tel.: 281 957 062 e 960 362 927
Ana Cristina Pereira
Público
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