sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Uma história de objectos

Saber como tratam os mortos é uma bela maneira de conhecer os vivos. Numa terra estrangeira, nada há mais curioso e elucidativo do que ir espreitar um cemitério. Poderá ser um cemitério de pessoas ou então um cemitério de objectos. Existem por todo o lado estes últimos, embora não propriamente assim definidos. Em Paris chamam-lhes Puces, mas das pulgas estão definitivamente expurgados os veludos e os dourados que nos olham ainda do alto da sua burguesia, com um brilho de arrogância. Em Londres, por Portobello, entre talheres de prata e bolas de críquete, reconhecem-se muitos estilos e marcas de um país que sempre foi exímio em inventá-los e exportá-las. Pois, há quem roube o lixo dos famosos na ânsia de lhes revelar quotidianos inconfessáveis. Eu cá prefiro o acto mais público de mirar os despojos acampados de uma sociedade para lhe confessar a história. Por comparação com as parentes europeias, a nossa é uma feira cabisbaixa, como diria o O’Neill. Seja no Porto, a Vandoma do terreiro da Cadeia da Relação ou, em Lisboa, a Ladra da terça-feira e do sábado também. Pelo chão, estendem-se paisagens de trastes tristes, lembranças das madrinhas, fundos de gavetas, restos de despensas, sombras de gestos. Quase sempre objectos insignificantes que, no seu conjunto, contam uma história muito significativa. O quê, por exemplo? Pela Ladra, há habitualmente singles de cantos dobrados da Amália estupidamente caros, que comprovam a sua entronização para a eternidade. E Nossas Senhoras de Fátima, seja com música, em bolas de neve, com luzinhas multicolores que acendem ainda milagrosamente no celulóide encardido, ou verdes como é de fluorescente tradição e, claro, ainda aquelas com a misteriosa propriedade de anunciar o tempo de amanhã. Essas nunca falham. Nem por lá nem no segredo que nos revelam de um povo que, tendo pouco de tudo, instrução incluída, lhe via sobrar a aflição e tanta era sua fé no além. Doutros tempos que também por cá ainda sobejam, ficaram os livros: os dos fascistas e os dos comunistas & outros esquerdistas, com dedicatórias e sublinhados a atestar essas outras devoções. Gosto particularmente de bisbilhotar os conteúdos de latas e caixinhas avulsas, aí se encontram com frequência as atenções e distrações de alguém que venho a conhecer. Podem ser cartas de amores perdidos, uma colecção de caricaturas habilidosas de um amador de actores populares, as fotografias de uma vida normal ( será que isso existe?), os retalhos e as rendas dos vestidos costurados das crianças atadas aos seus padrões. No fundo das caixas como no fundo de cada um de nós, espreita sempre alguma originalidade. Encontra-se muita coisa rota, rasgada, rachada, sejam azulejos roubados e partidos ou tachos amolgados e enfarruscados. Na minha contabilidade pessoal, sempre em quantidades infinitamente superiores àquelas que encontro além-fronteiras. E em cada uma dessas feridas e nódoas tão estimadas e preservadas está inscrita toda a doutrina da pobreza humilde e honrada daquele senhor António, toda a história da nossa miséria enfim ( que patético paradoxo, os retratos desse senhor estão tão cotados quanto os da D. Amália). Pois o que se encontra na Ladra é tudo aquilo que guardamos quando envelhecemos, que deixamos quando morremos, que abandonamos quando mudamos, que herdamos e já não queremos. Quando limpamos e arrumamos uma casa num novo tempo.