domingo, 1 de fevereiro de 2009

A função e o ornamento

O desígnio primeiro do design é cumprir uma função. Um objecto deve ser apropriadamente concebido para conseguir a utilidade que dele se pretende. Mas a arte do designer consiste em obedecer a este ditame convocando a beleza e, nos seus melhores dias, o encantamento. Por vezes, a beleza vem da simplicidade. O material certo e simples, simples e engenhosa também a forma. O artesanato costumava ser assim. Aquilo a que hoje chamamos artesanato, uma especialidade rural e patrimonial, foi durante muitos séculos o comum da oferta. Olhamos para uma bilha de barro de Estremoz e apreciamos a sua elegância quase austera, reparando contudo na doçura da sua curva. Sabemos que guarda a água preciosa que beberemos à temperatura correcta, graças a essa incrível e mágica propriedade do barro de a esfriar ligeiramente. E dando-lhe um sabor a nenhum outro comparável, revigorante. Função sem ornamento, função no entanto bela. Hoje, o artesanato já não é assim. Novos materiais e a produção industrial ofereceram-nos outros produtos. Alguns mesmo, capazes de mudar a nossa vida. Richard Kapucinski explicou um dia como a vida em África, nesse continente que ainda andava a pé, tinha mudado e melhorado graças ao bidon de plástico, quase sem peso, barato e essencial para ir buscar água à torneira menos distante. Assim, o artesanato foi-se tornando obsoleto para o uso comum. Os objectos de artesanato tornaram-se bibelots e a sua função mudou. Deixou de ser útil, passou a ser fútil. E ornamentado, a maior parte das vezes drástica e desnecessariamente ornamentado. Contudo, o ornamento não é um crime, para contrariar o arquitecto Adolf Loos cujo ensaio acusatório “Ornamento e crime” de 1908 repudiava o estilo art nouveau vienense (em favor de uma modernidade que privilegiaria um ornamento menos supérfluo e mais orgânico). Surpreendentemente, o ornamento também pode ter uma função, a de surpreender e maravilhar. Não conheço melhor exemplo disto que o trabalho que Rafael Bordalo Pinheiro assinou quando se decidiu dedicar à cerâmica. Aproveitando uma tradição decorativa da louça das Caldas, ela própria já fruto da influência do trabalho do renascentista Bernard Palissy recuperada com grande entusiasmo no séc. XIX em França, Bordalo dedicou-se a exacerbar o conhecido, transcendendo-o escultóricamente. Ele criou azulejos, toda a espécie de jarros e bilhas, pratos e travessas, porta-cartões ou tinteiros, penicos e escarradores, moldando-os ou acrescentando-lhes figuras, frutos, flores, animais e o que mais ocorresse à sua imaginação desvairada. O caso destes últimos é interessante para o nosso tema. Após a crise do Mapa Cor de Rosa, o ultimatum britânico às possessões portuguesas em África, Rafael concebeu um penico e um escarrador decorados com a figura de John Bull, o Zé Povinho inglês. Tal era o seu ornato para uma função utilitária mas também metafórica: escarrar e defecar no inimigo desprezado do momento. Entre as milhares de peças que Bordalo criou nos últimos doze anos da sua vida, encontram-se também os animais gigantes, figuras de espantosa dimensão representando caranguejos, sardões, cobras, lagostas, cogumelos ou vespas. Estes bichos foram colocados, na época, no jardim da Estrela em Lisboa, semeados pelo verde, surpreendendo os visitantes. A visão de um destes seres de louça, animal ou vegetal em representação, criação artificial brotando entre a natureza, é algo capaz de nos comover pelo seu inusitado, pela sua extravagância, pelo seu brilho – e não só o do vidrado. O seu destino era o ornamento mas a mestria tornou sua função a pura emoção. Crónica para a revista Relance, Fevereiro 2009. Catarina Portas