"Quem é que nós somos, ainda nos lembramos? Eu acredito profundamente na originalidade, na criatividade, na especialidade de cada um de nós. Na diferença. A diferença para mim é fundamental. A diferença não me afasta, a diferença atrai-me. E acho que é saudável nós sermos todos diferentes e podermos falar uns com os outros. Porque o ponto de vista do outro enriquece-me. O seu ponto de vista diferente faz-me pensar. Não é que eu venha a concordar com ele, se calhar até venho, mas faz sobretudo mexer isto, trabalhar, magicar, querer saber, ter curiosidade, senão, que tristeza de vida...
Algum do nosso passado também pode ser algum do nosso futuro. Tudo aquilo que nós olhámos ao longo das últimas décadas um bocadinho como símbolo do nosso atraso, do nosso imenso atraso - porque nos tínhamos industrializado e modernizado mais tarde do que o resto da Europa e do que outros países nossos vizinhos - o facto de ainda conservarmos algum desse saber fazer, da manufactura, do saber fazer das mãos, e houve fábricas que não cresceram demasiado, também é para o mercado que existe hoje em dia, extremamente interessante. Muita Europa perdeu essas fábricas e está outra vez à procura disso. Além de que, como estamos num mundo cada vez mais globalizado, as coisas são cada vez mais parecidas e é óbvio que, por oposição, o local também acabe por crescer.
Quando eu comecei a fazer pesquisa, e também porque sempre viajei muito, e estando o mundo cada vez mais igual, comecei a perceber, de facto, quão mais exótico por vezes era o meu país. E fiquei fascinada. E quando comecei a ir às fábricas - que é provavelmente hoje em dia a minha actividade favorita - conhecer todas as pessoas que fazem os produtos que eu vendo, e isso é uma coisa de que eu gosto, porque eu gosto de saber e sei exactamente qual foi a senhora que embrulhou aquele pacote de chá Gorreana, por exemplo.
Todos os países estimam as suas marcas antigas e nós tínhamo-nos esquecido um bocadinho delas, estávamos a esquecer-nos delas, a nossa geração e as gerações mais jovens conheciam menos bem estas marcas e, para elas, essa descoberta também foi uma surpresa.
Nós trabalhamos com empresas que podem ter várias centenas de pessoas como outras em que existem duas. São dimensões muito diferentes e eu tenho um respeito que nunca mais acaba por pessoas que conseguiram (mesmo às vezes quando as fábricas mudaram de mãos) ao longo de décadas, às vezes de um século, manter uma marca contra as vicissitudes da economia, da história, por aí fora, e conseguiram continuar a acreditar, a melhorar, a comercializar; sobretudo conseguiram continuar a dar emprego.
O trabalho das mãos é, para mim, das coisas mais preciosas. Lembro-me que muitas vezes ligava para as fábricas e a primeira resposta era quase sempre: "oh não, menina, isso é muito complicado!" Em 90% dos casos era a primeira frase. E era sempre preciso dar aquela volta, pedir, explicar. Mas depois, quando se conhecem as pessoas, elas também fazem coisas incríveis se precisarmos. Precisamos daquilo, para aquele prazo, etc, etc, e naquele dia está pronto. Era uma coisa dificílima mas é importantíssimo para não perder esta entrega, abrir no dia certo... E as pessoas fazem isso também. E há um trabalho muitas vezes de várias gerações, de muita gente empenhada, tem muita mão de obra, tem muito saber fazer. Isso dá muito valor a um produto. E saber transmitir isso aos clientes, toda essa informação, faz parte da compra.
Há uma ideia do Eduardo Lourenço, que nós temos simultaneamente um complexo de superioridade e um complexo de inferioridade, enquanto povo. E eu acho que isso é uma marca, uma herança da história, a dificuldade que temos de nos unir por uma causa comum. Não esqueçamos que nós vivemos num país de individualistas - e eu também acho que as coisas estão a mudar - mas, basicamente, eu cresci num país em que metade das pessoas não se digna a votar e metade da população foge aos impostos. E depois dizem "a culpa é deles". Mas "eles" somos nós, o Estado somos nós. Portanto, tudo começa por nós.
Esta dificuldade que nós temos... não gosto de falar em inveja mas digamos que há sempre uma desconfiança do outro. E esta coisa de dizermos mal à mesa do café é muito mais fácil do que obviamente mudarmos as coisas. E dizer que a culpa é daquele senhor que está lá em cima, mas aquele senhor é uma pessoa que nós elegemos e a responsabilidade é nossa. Enquanto não entendermos isto é difícil. Para nós o fracasso é mais difícil do que se calhar para os americanos ou para outros que têm esta cultura de fazer as coisas, OK, falha-se e depois recomeça-se e se calhar isso não é tão fácil para nós.
Cansei de ouvir dizer que isto é um país do Terceiro Mundo. Vão lá ao Terceiro Mundo e aí vão perceber que isto não é um país do Terceiro Mundo. É verdade que há coisas que não funcionam mas, apesar de tudo, temos uma qualidade de vida bastante especial.
Nós temos sempre um anseio de alguém que está lá em cima e nos há-de salvar. Em vez de pegarmos nas nossas mãozinhas para nos salvarmos e salvarmos a nós próprios e aos outros. E essa tendência para descansarmos em alguém que tem a responsabilidade, isso eu acho que é uma característica muito portuguesa, pelo menos destes últimos 20, 30 anos porque acho que vem de uma herança próxima que é a herança do salazarismo. isso é óbvio. Mas convinha que nos libertássemos disso o mais possível. Nós não podemos alterar o passado, devemos entendê-lo para que não se repita o que ele teve de pior.
A minha geração e a geração abaixo da minha tinha um grande desconhecimento de como é que os nossos pais, como é que os nossos avós tinham sido educados, em que mundo é que tinham vivido e como isso ainda influenciava o país que nós somos hoje. E achava de facto imprescindível que se soubesse um pouco mais. Entretanto aconteceram várias coisas... E tenho por certo que foi aquele momento fatídico em que o Salazar ganhou o concurso do maior português de sempre que fez com que essa gaveta finalmente se abrisse porque houve muita gente muito indignada e de repente isso voltou completamente.
A maior parte destas empresas já existia antes do Estado Novo e continuaram a existir depois do Estado Novo. Adaptaram-se ao seu mundo, senão também não tinham resistido. Mas o que é incrível - e isso foi para mim a grande descoberta enquanto jornalista - foi perceber como era possível contar a história de um país, de um povo, de uma sociedade através dos produtos de consumo. E, de facto, há coisas incríveis. Dos rótulos dos sabonetes eu consigo ter uma visão do que foi a história de Portugal durante 100 anos. A andorinha também nos simboliza bastante, é preta e branca o que é quase triste mas por outro lado voa com imensa alegria, é muito pequena mas extremamente valente, atravessa oceanos ou mais propriamente continentes, do sul ao norte e sobretudo volta sempre a casa. Acho que tem muito a ver com os portugueses.
Espero que o Miguel Esteves Cardoso seja sempre lembrado. Eu sou de uma geração que tem muito a dever ao Miguel, pela forma como ele nos viu, foi de facto uma coisa muito nova. Ele pegou também nos produtos antigos, na coluna do expresso, A Causa das Coisas, a pretexto de produtos antigos falava das características dos portugueses. Mas depois com o Independente, foi muito uma aprendizagem minha, estive por lá nos primeiros tempos e havia uma forma de ver as coisas. Havia sobretudo uma enorme discussão sobre como ver as coisas e quais as coisas que devíamos ver.
Lembro-me sempre muito das tarde que eu passada com a minha mestra chapeleira. Eu tinha 17, 18 anos e ela tinha 70 e muitos. Eram tardes inteiras a conversar e o que eu aprendi nenhuma escola me poderia ensinar. Eu não queria ir para a universidade, queria ser modista de chapéus. E fui aprendiza durante dois anos.
Fui dois anos aprendiza e esse atelier onde eu trabalhei durante dois anos aqui no Chiado, na Calçada do Combro, eu tinha uma mestra, a dona Virgínia, e todas essas tardes em que eu saía do liceu e ia para lá cozer. Aprender a cozer com a agulha curva, uma série de técnicas, porque ainda por cima os chapéus mexem com imensos materiais diferentes, é muito complicada a chapelaria de alta costura, tem muito que saber e essas tardes a ouvr as histórias, a perceber de facto o incrível que é. As mãos da dona Virgínia fariam inveja a qualquer cirurgião. Era extraordinário o que ela fazia com aquelas mãos.
Mas essa é uma questão que me preocupa ainda hoje, a história do aprendizado, a história das lojas antigas, neste momento aflige-me que haja um certo novo-riquismo pelo qual nós passámos nos anos 80 e nos anos 90. O que é natural, de repente chegaram as marcas estrangeiras a Portugal, tanta coisa nova, incrível. Os portugueses sempre tiveram uma tendência para achar que a primeira qualidade de um produto é ser estrangeiro, não é se é bom ou se é mau, é se é estrangeiro. Isto era uma coisa assim para o chique, não é?
Hoje em dia as empresas quanto mais crescem mais accionistas têm e mais contas têm que prestar aos seus accionistas. E há uma dimensão humana do negócio que se perde, porque já só contam os resultados e os números. É preciso é que as margens sejam maiores. Por isso, eu acho que estas pequenas ou médias empresas ajudam a fazer um mundo melhor, um mundo onde é muito mais agradável viver.
Eu prefiro saber que este produto é feito em Portugal com as regras de trabalho que nós temos. Porque quando este produto vem da China ou de outro país que não tem as mesmas regras de trabalho que nós temos, pode ter sido feito por crianças ou por pessoas que estão a trabalhar 70, 80 ou 90 horas por semana, pessoas que estão em camaratas, que são extremamente mal pagas, cujos direitos são completamente usurpados. Em que mundo é que eu quero viver? Há um barato que sai caro. Sai caro em termos humanos. Se nós temos alguma preocupação de querer viver num mundo justo, ou o mais possível justo, tudo começa por nós e pela nossa atitude. Às vezes poupar cinco cêntimos é poupar aquela pessoa que nós conhecemos ao desemprego.
Como é que as coisas que nós consumimos são produzidas? Elas não aparecem por milagre numa prateleira de um supermercado. E é muito interessante perceber isso porque isso também molda o mundo em que nós vivemos. Quando uma t-shirt custa a mesma coisa que um pão, há qualquer coisa que não está bem. Um pão é trigo que cresce, é moído e as mãos amassam, com água, e vende-se numa loja. Uma t-shirt é algodão que cresce, que é apanhado, que é fiado, que é tingido, de que é feito o tecido, que é cortado, cozido, embrulhado, vem não sei de onde, é posto à venda numa loja... Como é que pode custar a mesma coisa? Não é possível. Acho que é muito importante sabermos com que regras é que as coisas são feitas e como é que são vendidas. Porque são decisões que nós tomamos no dia-a-dia. Quando vamos ao hipermercado, quando vamos às marcas que controlam totalmente o mercado... E há duas marcas hoje em dia que controlam 70% da grande distribuição alimentar, portanto fazem o que querem e nós vimos isso... é benéfico para os consumidores? É no momento em que consomem mas quas são as consequências disso? Eu não quero. Eu hoje em dia vou ao supermercado e eu não vejo aquela marca portuguesa que eu conheço, encontro produtos que eu não sei como são fabricados, por quem nem como. Chego aos legumes e vejo batatas e cebolas espanholas e pergunto-me porquê. E acho que as pessoas têm que começar a ser exigentes também. Porque o importante não são só os números. O vermos só os números conduziu-nos também ao mundo em que estamos.
Com a crise económica em que nós estamos, é melhor começarmos a consumir aquilo que produzimos porque senão é que não saimos mesmo daqui. Acho que a crise, apesar de todos os seus defeitos e dramas teve um grande benefício que foi as pessoas pensarem no que estão a fazer. E eu acredito profundamente que o consumo pode ter uma componente política, cívica, no sentido de cidadania. Um consumidor, escolhendo a quem entrega o seu dinheiro pode ajudar a mudar o mundo. Não tenho dúvidas nenhumas sobre isso. É preciso é sermos muitos.
Hoje em dia recebo muitos turistas nas lojas d' A Vida Portuguesa. Há estrangeiros que moram cá e adoram o país. Há estrangeiros que conhecem mal e de repente percebem que de facto há umas coisas imbatíveis em Portugal. A relação qualidade-preço do vinho e do peixe portugueses, por exemplo, é imbatível em relação a qualquer país da Europa ou mesmo fora da Europa. Eu acho que nós temos sempre tendência a considerarmo-nos menos interessantes do que somos. Vivemos há tanto tempo aqui que deixamos de reparar nas coisas que estão perto de nós. Em relação às coisas portuguesas, o facto de ter tido uma educação um bocadinho estrangeirada e de ter sempre viajado muito, fez com que quando eu comecei a descobrir Portugal mais em pormenor digamos, se calhar estava mais atenta a uma série de coisas porque vinha com um olhar habituado a outra coisa.
O Chiado hoje em dia tem tendência a transformar-se porque já só as multinacionais ou as grandes cadeias de lojas mesmo que nacionais, é que conseguem ter uma loja na Rua Garrett porque os preços são totalmente proibitivos. E há toda esta tendência para transformar estas lojas em lojas que poderiam estar num centro comercial. E isso eu acho uma pena porque a mais-valia de estar no centro antigo da cidade é exactamente os espaços, sobretudo os espaços interiores e o que foi feito neles ao longo de 100 ou 200 anos. No ano passado fui a Nova Iorque e as lojas que encontrei lá são exactamente as mesmas que encontro aqui, à saída desta loja, e pensei "porque é que eu atravessei um oceano?" É a globalização e apesar de tudo nós gostamos de ter acesso às coisas mas não é tão interessante assim, acho que vamos acabar por chegar a essa conclusão sermos todos iguais. E portanto é natural que as raízes e o que nos faz diferentes, a nossa diferença, cada vez mais se afirme num mundo que tem a tendência a ser cada vez mais parecido.
Eu gosto mais de juntar a tradição e a identidade. Aliás tenho sempre aqueles momentos dificeís quando dizem que a minha loja é sobre a saudade. Qual saudade! isto não é quem nós fomos, é quem nós somos. E pode-nos ajudar a ser quem nós seremos." Catarina Portas, Portugal De...
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