quarta-feira, 13 de maio de 2015

"Fernandes: Uma papelaria histórica preparada para conquistar o futuro"

"A sebenta, o bloco cavalinho, a tabuada Ratinho, há produtos que há muito atravessam gerações na Papelaria Fernandes. Ainda hoje estão nas montras, pois mesmo a olhar para o futuro, a mais popular papelaria de Lisboa não esquece o passado. E mesmo que tentasse José Pinto não deixaria. São 45 anos de histórias, aventuras, bons e maus momentos que também retratam uma parte dos 123 anos da Papelaria Fernandes.

O ano de 1969 pode parecer longínquo, mas quando Pinto (como é conhecido) fala daquele primeiro dia, parece que tinha acontecido ontem, tal é a forma pormenorizada que se recorda. Lembra-se como fez as contas todas certas – e “não era há moda da escola”, mas os “mais velhos” tinham-lhe explicado como se fazia – e como o chefe não quis ficar com ele. “Fizeste tudo bem, mas onde é que já se viu um canhoto a um balcão. Não serves para isso”, disse-lhe. O momento apenas reforçava o trauma de ser canhoto, que já vinha do tempo da escola, mas outros trabalhadores acabaram por convencer o patrão a ficar com Pinto. “Oh rapazinho, anda cá. És canhoto, mas podes servir para outra coisa”, disse-lhe.

Tinha 13 anos e muitas das histórias começam com a expressão “oh rapazinho”, como Pinto era tratado pelo seu chefe. Tudo era diferente na época e a forma como gosta de descrever é: “O tempo andava mais devagar nessa altura.” Refere-se à convivência entre empregados e clientes, às verdadeiras tertúlias que aconteciam espontaneamente porque muitos eram os que iam à papelaria comprar, mas que ficavam muito mais tempo só para conversar.

Relembra como as filas na loja Largo do Rato, onde trabalhou a maior parte do tempo, estendiam-se a perder de vista à hora de almoço, à espera da abertura das portas às 15 horas, quando as aulas começavam; os quilómetros que andava para entregar as encomendas ou como o chefe tinha pena e no inverno dava-lhe (e aos colegas) dinheiro para o autocarro; as “coboiadas” que ele e os colegas, também jovens, armavam quando estavam a arrumar material no armazém; e dá especial ênfase à obrigatoriedade de usar o fato completo: “Nem com calor podíamos tirar o casaco.” Isto até ao pós-25 de Abril quando foi a “anarquia total” no visual dos trabalhadores da Papelaria Fernandes.

Mas as calças… as calças de riscas que custaram 300 escudos marcam o início da carreira de Pinto na loja. “Eu vinha de uma família bastante humilde. Tinha a roupa dos miúdos daquela altura”, começa a contar. Depois de vestir uma camisa e gravata amarela que lhe foram emprestadas por outros colegas, aquelas calças era o sonho de Pinto para ficar mais elegante para trabalhar. “Ainda me lembro, era a loja ABC. Convenci a minha mãe a deixar-me comprar as calças.” O ordenado começou nos 200 escudos e foi subindo até aos 500 e como era menor, tinha direito a duas semanas de férias, enquanto os mais velhos só tinham uma. “Vim todo aprumado com a gravata e casaco azul [e as calças] e ouço: ‘Oh rapazinho, anda cá. Você hoje veio atrasado.’ Não, estou cá há muito, respondi. ‘Como é que não veio atrasado se ainda traz as calças do pijama? Vá já a casa mudar as calças.’ E agora? Como é que dizia à minha mãe que as calças não serviam para o trabalho?”

A carreira de Pinto foi progredindo e desempenhou muitas funções na Papelaria Fernandes. Aliás, deverá ter havido pouco que não tenha feito. As histórias de José Pinto multiplicam-se, sempre passando a ideia que então havia grande camaradagem entre os trabalhadores, que chegaram a ser 1500. As partidas eram muitas, de tal forma, que Pinto chegou ao ponto de desconfiar quando lhe pediram para ir comprar uma pedra para os calos. “Pensava que estava a brincar, mas afinal a pedra existia mesmo.”

Recorda como era proibido ter música e ele e mais uns rapazes improvisaram uma canções, fazendo o chefe pensar que tinham um rádio escondido. Ou então quando partiram uma televisão da senhora da ervanária, a quem tinham pedido emprestado para ver o Benfica, ou como resolveram enganar o rapaz madeirense, dizendo-lhe que a única forma de abrir uma torneira era dizer “abre-te sésamo” (havia um pedal que fazia a água sair). Esta última partida valeu-lhe a chamada do pai à papelaria e umas horas de medo, pois Pinto pensava que ia bater-lhe, o que não aconteceu.

Naquela época o cliente não mexia nos produtos. Ia ao balcão e pedia o que queria, nem que fosse apenas uma borracha. Até havia uma área dedicada apenas aos militares. Os mais novos tinham a função de fazer a reposição do material. Aproximava-se o 25 de Abril e Pinto recorda como o Largo do Rato viveu uma “fase tremida a nível político”. “Era o pandemónio com a polícia. Quando o comissário batia com a varinha no vidro, já sabia que tinha de tapá-los com papel cenário. Tapava-se as montras para as pessoas circularem.”

Depois do 25 de Abril também a Papelaria Fernandes entrou numa nova era, com os trabalhadores a reinvidicarem outros direitos (“com alguns concordava, outros não”, diz Pinto). À luta pelas 44 horas e às greves junta-se a “anarquia total” (como lhe chama) na forma como os empregados se apresentavam para trabalhar. Se então o casaco até já nem era obrigatório, o fato ficou completamente esquecido e deixou-se crescer o cabelo e o bigode, o que anos antes era impensável e completamente proibido.

Os anos 70 marcaram também a chegada das primeiras máquinas, começando a substituir o trabalho até então 100% manual. Mais tarde houve mesmo uma formação em computadores que Pinto participou, mas admite que gostaria de ter aprendido melhor. “Os mais velhos questionava para que serviam e eu devia ter ligado mais a isso.”

Em 45 anos conheceu várias figuras públicas, algumas só mais tarde ocupariam cargos de relevo na política, por exemplo. Amália Rodrigues, General Costa Gomes, Maria José Morgado, Maria de Lurdes Pintassilgo ou Manuela Ferreira Leite, são apenas alguns dos nomes que se recorda.

Quando a Papelaria Fernandes começou a abrir lojas em centros comerciais, José Pinto esteve envolvido em dois momentos que considera um dos mais felizes da sua carreira e outros um dos mais tristes. Esteve na abertura da loja no CascaisShopping e depois no seu encerramento, numa altura em que a papelaria entrou em insolvência e Pinto chegou mesmo a ir para o fundo do desemprego, em agosto de 2010. “Chorei que nem uma criança”, conta. Mas foram só três meses, pois houve quem não quisesse deixar morrer uma marca centenária e deu início a uma nova vida da Papelaria Fernandes, que pode já não contar com muitos dos seus trabalhadores (“era uma escola”, salienta José Pinto), mas foi buscar alguns, pois a sua experiência tem sido valiosa para a nova fase da história da papelaria.
“Agora já não almoçamos todos juntos, a seguir não vamos todos beber um copo, pois cada um tem o seu horário. Outros tempos…”, desabafa Pinto, que diz também já não fazer tantas partidas, versão imediatamente desmentida por Jorge Leal, o diretor comercial.

Pinto continua na loja do Largo do Rato, uma das cinco existentes em Lisboa, numa altura em que a Papelaria Fernandes vai renascendo, mantendo a ligação às suas raízes, mas com olhos no futuro, como exemplifica a aposta na representação exclusiva de uma marca italiana, a Campo Marzio, que está à venda na loja da Rua do Ouro, número 167, desde o final de outubro.

Jorge Leal explica que foi um acionista que não quis deixar cair a marca Papelaria Fernandes e criou a Papetarget. As lojas da Rua do Ouro e do Largo do Rato nunca chegaram a fechar e foram o ponto de partida da nova vida. 12 pessoas começaram essa fase. Hoje são 28.

Se há produtos que seria estranho não ver na Papelaria Fernandes, Jorge Leal salienta que além do reforço do material já amplamente conhecido, olha-se agora para o estrangeiro e a Papetarget já é representante exclusiva da Nunna, além da Campo Marzio. No caso da Nunna, marca alemã, os notebooks coloridos apontam a um público diferente, sendo bem diferente dos tradicionais Flecha, que continua a ser muito procurados.

Já a Campo Marzio traz para Portugal material de escrita e complementos de escritório “muito fashion”, como descreve o diretor comercial. “Não tem nada a ver com o produto tradicional”, garante. Malas, porta-chaves, encontra-se um pouco de tudo, “com design muito italiano, com muita cor e não de preço elevado”. São passos que a Papelaria Fernandes vai dando rumo a uma nova consolidação da marca, para já em Lisboa, mas para o futuro há muita confiança."

ELISABETE SILVA

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