Catarina abriu as portas da loja do Intendente à revista culinária suíça Saisonküche. “Tudo começou em 2004 com 1.000 euros de capital de arranque e uma boa ideia. Ela procurou, por Portugal inteiro, produtos tradicionais com embalagens originais - conservas de peixe, sabonetes do tempo das avós e brinquedos de antigamente.” Hoje em dia “há farinhas e café em pacotes antigos, sal do mar Atlântico em sacos de pano, xaropes há muito esquecidos e utensílios de cozinha nostálgicos.” Mas a jornalista Patricia Engelhorn ficou particularmente surpreendida - e deliciada - com o Queijo de Figo, "feito com figos prensados, cacau, frutas vermelhas, amêndoas, canela e limão", que definiu como “viciante”. "Todos aqueles que não vivem em Portugal podem comprar belas lembranças culinárias para levar para casa”.
segunda-feira, 10 de agosto de 2015
quinta-feira, 6 de agosto de 2015
"Vintage brands and local wares"
“Not long ago, most Lisboans steered clear of this former red-light-district north of Martim Moniz square. But redevelopment has brought in artists and artisans and Joana Vasconcelos’s Kit Garden, a sculpture that now sits in the heart of the neighborhood. Behind the dazzling façade of a former tile warehouse, an outpost of A Vida Portuguesa carries vintage brands and local wares: hand-wrapped tins of Tricana tuna, Ach Brito soaps, hats from the Azores. On sunny days, locals pack the esplanade tables outside O das Joana for Mediterranean dishes like béchamel-smothered cod, then head to the 19th-century town house Casa Independente, which hosts screening and concerts on its patio.”
Travel + Leisure
México
México
terça-feira, 4 de agosto de 2015
“Shop ’til you drop in downtown Porto"
"Shopping in downtown Porto is authentic and original. You’ll feel like stepping back in time as you browse through creative yet somewhat vintage boutiques selling items you wouldn’t find anywhere else. Check out: A Vida Portuguesa (one of the most original stores in the country,) Pérola do Bolhão (a traditional grocery store,) Lobo Taste (a contemporary concept store) and Arcadia (for delicious chocolates!)” Galeria de Paris 20, 4050-182 Porto, Portugal
Wendy Hung, Jetset Times
Wendy Hung, Jetset Times
segunda-feira, 3 de agosto de 2015
Entrevista à Antena 1 Açores
"Aprendiz de chapeleira, trabalhou em rádio, jornais, revistas, livros, documentários e agora tem a sua vida inteiramente devotada à Vida Portuguesa. Espero que nos Açores esteja a conseguir fazer aquilo que mais falta lhe faz: descansar. É a Catarina Portas, está de saltos altos hoje à noite.
Olá Catarina, os Açores estão a conseguir trazer-lhe esse bálsamo?
Olá, muito boa noite. Bom, eu vim trabalhar (risos). Mas trabalhar desta forma é uma coisa muito prazerosa, de facto. É muito, muito bom, primeiro porque adoro esta ilha, gosto muito dos Açores e estou a fazer aquilo de que mais gosto nesta vida, portanto, é um prazer (risos).
A Catarina tem estado durante toda esta semana naquela zona de chá da Gorreana, a trabalhar com o Serrote e há um projecto de uma nova embalagem mas com certeza outros a que a Catarina quer dar corpo.
Eu vim porque há dois Nunos que estão aqui a trabalhar - o Nuno Coelho e o Nuno Neves, da Serrote - com quem eu trabalho já há muitos anos e de quem sou amiga. Eles vinham e às tantas era uma boa altura para vir também. Eu tinha também muita vontade de vir, já tinha estado na Gorreana, há três anos atrás. Eu tenho também um negócio de quiosques e acessória a esse negócio de quiosques uma linha de xaropes para fazer refresco e nós lançámos há dois anos um frasco de xarope de chá verde Gorreana. E nessa altura estive cá mas vim a correr e agora finalmente vim com tempo, acrescentei um outro cúmplice a esta aventura, o Sebastian Filgueiras, que tem uma loja de chá em Lisboa, é um argentino que vive há muitos anos em Lisboa e portanto viemos todos e passámos a semana quase toda na Gorreana, onde preparámos dois lotes especiais, de chá Oolong e de chá Puchong, que já não se fazia há mais de dez anos na Gorreana, segundo nos informaram, e sabe-se lá o que virá depois mas foi muito interessante - eu adoro fábricas (risos)!
Está subjacente toda esta paixão que a Catarina descobriu e que agora é tão marcante na sua vida, a recuperação de produtos e de marcas antigas. Tudo começou por aí, por um trabalho, por uma tese e a necessidade de se auto-financiar.
Foi, eu na altura queria fazer documentários, andava a tentar angariar apoio financeiro para fazer documentários, sempre à espera dos concursos, aquelas coisas e portanto estava um bocadinho solta na vida, comecei às tantas a pensar também num livro que tinha a ver com a vida quotidiana em Portugal no século XX e de repente comecei a pesquisar e comecei a perceber que não só nós tínhamos ainda muitos produtos com as embalagens antigas mas também que esse produtos estavam a desaparecer muito rapidamente. Por várias razões, uma delas também tem a ver com o auge da grande distribuição em Portugal, são marcas algumas delas mais pequenas que não entraram na grande distribuição. O comércio local, como nós sabemos, também teve uma tendência grande, que ainda não estancou mas está a melhorar, tinha vindo a diminuir e muitos destes produtos também estavam a ter pouco mercado. E a minha ideia foi apresentar estes produtos, bom, primeiro experimentá-los, seleccioná-los e depois apresentá-los a uma nova geração. Porquê? Porque havia, de facto, e há produtos muito bons e muitas vezes desconhecidos. Eu acho que nós, portugueses, hoje em dia as coisas mudaram um bocadinho, mas nós também estávamos, também é normal, nós tivemos durante muitos anos um mercado bastante fechado ao exterior e, de repente, a partir dos anos 80 começaram a chegar muitas marcas estrangeiras, houve um deslumbre com isso, o que é absolutamente natural, mas esquecemo-nos um bocadinho das nossas próprias marcas. E não é uma questão de saudade, para mim, de todo, primeiro é uma questão de identidade e é uma questão também de racionalidade económica. Porque se nós consumirmos produtos que são feitos em Portugal, nós estamos a pagar salários em Portugal. Eu acho que organizarmo-nos localmente é uma boa forma de enfrentarmos o global. O global, a homogeneização, nós não queremos ser todos iguais. Nós queremos ter acesso a muitas outras coisas mas não queremos ficar todos iguais. E portanto também acho que temos que proteger as nossas coisas e pensar de facto qual é o nosso chão. E há imensas coisas que nós às vezes, eu acho que os portugueses têm bastante auto-estima no que respeita a futebol e a gastronomia mas às vezes não têm muita auto-estima no resto. Mas acho que deviam ter. Nós vivemos num belíssimo país, claro que tem os seus problemas, como todos os países têm, mas é um belíssimo país, onde há gente que trabalha muitíssimo bem. Acho que isso hoje, aliás, é mais reconhecido do que era quando eu comecei, tanto dentro como fora. E portanto, eu comecei a pesquisar sobre os produtos, que também é uma outra forma de contar a história de um povo, a história do seu consumo, as suas manias…
A progressão da imagem…
Também, toda a parte do design gráfico, que é muito interessante. E depois por outro lado há estas empresas pelas quais eu tenho uma grande admiração, estas empresas valentes, algumas aguentaram cem anos, 120 anos, passaram as guerras, passaram tanta coisa, passaram sucessões na liderança das empresas, é incrível esse saber fazer! E outra coisa que eu pensei na altura que era interessante, que o nosso atraso podia ser o nosso avanço. O que é que eu quero dizer com isto? O resto da Europa industrializou-se muito antes e muito mais do que nós, e nós tínhamos esta coisa um bocadinho atrasada, da manufactura. Sabemos fazer muitas coisas à mão em vez de termos máquinas a fazer por nós… Mas na verdade há um mercado hoje em dia muito mais interessante, muito mais curioso e muito mais atento, esse saber fazer, que é uma coisa que a Europa já perdeu e continua a perder.
Porque hoje em dia está tudo massificado…
Exactamente. E que hoje em dia é muitíssimo valorizado. E nós ainda, por causa desse atraso, temos muita gente que sabe fazer coisas com as suas mãos. E eu na altura, quando escolhi os primeiros produtos para A Vida Portuguesa, tinha três critérios: serem produtos que estavam no mercado pelo menos há mais de 30, 40 anos, terem uma embalagem que ainda era a original ou tinha alguma lembrança da original (porque eu queria retirar estes produtos da mercearia para os introduzir, com informação, nas lojas dos museus, nas lojas de design, para procurar esse outro público que eu achava que poderia gostar destes produtos) e que os produtos ainda tivessem alguma doses de manufactura na sua produção. Estes foram os três principais critérios. E pronto, hoje em dia temos quatro lojas e mais de 300 fornecedores. (risos) Foi um longo caminho.
Essa produção artesanal veio encontrá-la aqui na gráfica açoreana neste trabalho que está a ser desenvolvido pelos dois Nunos…
Exactamente. Porque a proposta deles era vir trabalhar com a tipografia micaelense, e fazer um workshop sobre a imagem gráfica da Gorreana ao longo do tempo. E portanto eu pensei que era interessante, já que eles iam pensar no invólucro, já agora pensar no conteúdo também, completá-lo. Não será no contexto do festival, mas o facto de o festival os ter trazido, no fundo o Walk&Talk lançou a ideia. E nós apanhámo-la, encontrámo-nos aqui, foi uma belíssima semana, muito intensa de troca, de conversa, de criação também, de reflexão… belíssimos dias."
Olá Catarina, os Açores estão a conseguir trazer-lhe esse bálsamo?
Olá, muito boa noite. Bom, eu vim trabalhar (risos). Mas trabalhar desta forma é uma coisa muito prazerosa, de facto. É muito, muito bom, primeiro porque adoro esta ilha, gosto muito dos Açores e estou a fazer aquilo de que mais gosto nesta vida, portanto, é um prazer (risos).
A Catarina tem estado durante toda esta semana naquela zona de chá da Gorreana, a trabalhar com o Serrote e há um projecto de uma nova embalagem mas com certeza outros a que a Catarina quer dar corpo.
Eu vim porque há dois Nunos que estão aqui a trabalhar - o Nuno Coelho e o Nuno Neves, da Serrote - com quem eu trabalho já há muitos anos e de quem sou amiga. Eles vinham e às tantas era uma boa altura para vir também. Eu tinha também muita vontade de vir, já tinha estado na Gorreana, há três anos atrás. Eu tenho também um negócio de quiosques e acessória a esse negócio de quiosques uma linha de xaropes para fazer refresco e nós lançámos há dois anos um frasco de xarope de chá verde Gorreana. E nessa altura estive cá mas vim a correr e agora finalmente vim com tempo, acrescentei um outro cúmplice a esta aventura, o Sebastian Filgueiras, que tem uma loja de chá em Lisboa, é um argentino que vive há muitos anos em Lisboa e portanto viemos todos e passámos a semana quase toda na Gorreana, onde preparámos dois lotes especiais, de chá Oolong e de chá Puchong, que já não se fazia há mais de dez anos na Gorreana, segundo nos informaram, e sabe-se lá o que virá depois mas foi muito interessante - eu adoro fábricas (risos)!
Está subjacente toda esta paixão que a Catarina descobriu e que agora é tão marcante na sua vida, a recuperação de produtos e de marcas antigas. Tudo começou por aí, por um trabalho, por uma tese e a necessidade de se auto-financiar.
Foi, eu na altura queria fazer documentários, andava a tentar angariar apoio financeiro para fazer documentários, sempre à espera dos concursos, aquelas coisas e portanto estava um bocadinho solta na vida, comecei às tantas a pensar também num livro que tinha a ver com a vida quotidiana em Portugal no século XX e de repente comecei a pesquisar e comecei a perceber que não só nós tínhamos ainda muitos produtos com as embalagens antigas mas também que esse produtos estavam a desaparecer muito rapidamente. Por várias razões, uma delas também tem a ver com o auge da grande distribuição em Portugal, são marcas algumas delas mais pequenas que não entraram na grande distribuição. O comércio local, como nós sabemos, também teve uma tendência grande, que ainda não estancou mas está a melhorar, tinha vindo a diminuir e muitos destes produtos também estavam a ter pouco mercado. E a minha ideia foi apresentar estes produtos, bom, primeiro experimentá-los, seleccioná-los e depois apresentá-los a uma nova geração. Porquê? Porque havia, de facto, e há produtos muito bons e muitas vezes desconhecidos. Eu acho que nós, portugueses, hoje em dia as coisas mudaram um bocadinho, mas nós também estávamos, também é normal, nós tivemos durante muitos anos um mercado bastante fechado ao exterior e, de repente, a partir dos anos 80 começaram a chegar muitas marcas estrangeiras, houve um deslumbre com isso, o que é absolutamente natural, mas esquecemo-nos um bocadinho das nossas próprias marcas. E não é uma questão de saudade, para mim, de todo, primeiro é uma questão de identidade e é uma questão também de racionalidade económica. Porque se nós consumirmos produtos que são feitos em Portugal, nós estamos a pagar salários em Portugal. Eu acho que organizarmo-nos localmente é uma boa forma de enfrentarmos o global. O global, a homogeneização, nós não queremos ser todos iguais. Nós queremos ter acesso a muitas outras coisas mas não queremos ficar todos iguais. E portanto também acho que temos que proteger as nossas coisas e pensar de facto qual é o nosso chão. E há imensas coisas que nós às vezes, eu acho que os portugueses têm bastante auto-estima no que respeita a futebol e a gastronomia mas às vezes não têm muita auto-estima no resto. Mas acho que deviam ter. Nós vivemos num belíssimo país, claro que tem os seus problemas, como todos os países têm, mas é um belíssimo país, onde há gente que trabalha muitíssimo bem. Acho que isso hoje, aliás, é mais reconhecido do que era quando eu comecei, tanto dentro como fora. E portanto, eu comecei a pesquisar sobre os produtos, que também é uma outra forma de contar a história de um povo, a história do seu consumo, as suas manias…
A progressão da imagem…
Também, toda a parte do design gráfico, que é muito interessante. E depois por outro lado há estas empresas pelas quais eu tenho uma grande admiração, estas empresas valentes, algumas aguentaram cem anos, 120 anos, passaram as guerras, passaram tanta coisa, passaram sucessões na liderança das empresas, é incrível esse saber fazer! E outra coisa que eu pensei na altura que era interessante, que o nosso atraso podia ser o nosso avanço. O que é que eu quero dizer com isto? O resto da Europa industrializou-se muito antes e muito mais do que nós, e nós tínhamos esta coisa um bocadinho atrasada, da manufactura. Sabemos fazer muitas coisas à mão em vez de termos máquinas a fazer por nós… Mas na verdade há um mercado hoje em dia muito mais interessante, muito mais curioso e muito mais atento, esse saber fazer, que é uma coisa que a Europa já perdeu e continua a perder.
Porque hoje em dia está tudo massificado…
Exactamente. E que hoje em dia é muitíssimo valorizado. E nós ainda, por causa desse atraso, temos muita gente que sabe fazer coisas com as suas mãos. E eu na altura, quando escolhi os primeiros produtos para A Vida Portuguesa, tinha três critérios: serem produtos que estavam no mercado pelo menos há mais de 30, 40 anos, terem uma embalagem que ainda era a original ou tinha alguma lembrança da original (porque eu queria retirar estes produtos da mercearia para os introduzir, com informação, nas lojas dos museus, nas lojas de design, para procurar esse outro público que eu achava que poderia gostar destes produtos) e que os produtos ainda tivessem alguma doses de manufactura na sua produção. Estes foram os três principais critérios. E pronto, hoje em dia temos quatro lojas e mais de 300 fornecedores. (risos) Foi um longo caminho.
Essa produção artesanal veio encontrá-la aqui na gráfica açoreana neste trabalho que está a ser desenvolvido pelos dois Nunos…
Exactamente. Porque a proposta deles era vir trabalhar com a tipografia micaelense, e fazer um workshop sobre a imagem gráfica da Gorreana ao longo do tempo. E portanto eu pensei que era interessante, já que eles iam pensar no invólucro, já agora pensar no conteúdo também, completá-lo. Não será no contexto do festival, mas o facto de o festival os ter trazido, no fundo o Walk&Talk lançou a ideia. E nós apanhámo-la, encontrámo-nos aqui, foi uma belíssima semana, muito intensa de troca, de conversa, de criação também, de reflexão… belíssimos dias."
Transcrição da primeira parte da entrevista de Elsa Soares para o programa Saltos Altos da Antena 1 Açores. Julho de 2015.
"Um bule de chá para quatro"
"Na Tipografia Micaelense, nos Açores, dois designers reinventaram as embalagens da Gorreana | A ideia foi do festival de arte pública Walk & Talk, que termina este sábado, 1 de agosto, em São Miguel, nos Açores: juntar, numa residência artística, o designer do Porto Nuno Coelho, a fábrica Gorreana e a Tipografia Micaelense. O resultado já é visível: quatro novas embalagens de chás com uma imagem simples, inspirada no passado para chegar ao futuro. Uma edição limitada, que, espera-se, chegue depressa a algumas lojas.
O projeto começou em maio, quando Nuno Coelho visitou, pela primeira vez, a fábrica Gorreana, aberta desde 1883 e única na Europa. "Confesso que fiquei dececionado porque vendiam-se exatamente os mesmos pacotes de chá que em qualquer outra loja. Não havia nada que me dissesse 'eu vim à fábrica'. E a verdade é que ali já existe tudo, neste trabalho não foi preciso inventar nada", diz o designer de 39 anos. Resolveu ir em busca do espólio da Gorreana e mergulhou nos arquivos: entre os caixotes de rótulos antigos que ainda há por ali e jornais de outras épocas, descobriu apenas três anúncios aos chás (que hão de ser transformados em postais) e alguns pormenores de design em que pegou para modificar as embalagens prateadas e coloridas que agora se vendem.
E se um Nuno pode muito, dois Nunos mais ainda, acredite-se. Nuno Coelho convidou Nuno Neves, das Publicações Serrote, para conceber com ele as novas imagens na Tipografia Micaelense. A trabalhar há 10 anos (tem 39, também) com caracteres tipográficos móveis entre Algés e a Serra da Lousã, quase parece fácil o que faz, quando o vemos manipular de forma minuciosa e precisa, com a ajuda de uma pinça, as minúsculas peças de chumbo. Escolhidas entre os milhares que existem na tipografia de Ponta Delgada, compõem agora as imagens criadas para as novas embalagens. Com elas, os designers "desenharam" um bule de chá, que depois dividiram em quatro partes iguais - a cada uma atribuíram uma das qualidades de chá mais populares na Gorreana (os pretos Pekoe, Orange Pekoe e Broken Leaf, e o verde Hysson) e uma das quatro cores já usadas pela marca (vermelho, azul escuro, azul claro e verde). Comum a todas as embalagens é o papel craft e o castanho das letras ( no entanto, o tipo escolhido para o nome varia consoante a leveza do chá).
Com a ajuda do açoriano Dinis, que comprou a Tipografia Micaelense em 1996, e numa máquina de impressão que não terá muito menos anos do que esta casa aberta desde 1957, os dois Nunos apuraram as cores, a localização exata dos carateres móveis, a pressão com que estes imprimem o papel. Pouco depois, estavam já na fábrica Gorreana, a ver as folhas serem transformadas em embalagens como ainda se faz por ali: à mão, com a ajuda de um paralelepípedo de madeira. Tão simples e artesanal como o chá que levam dentro e a imagem que agora ostentam por fora."
Gabriela Lourenço, nos Açores, para a Visão
Fotografias de Rui Soares e Sara Pinheiro
"A grande obra de arte dos Açores são as pessoas"
"No festival Walk&Talk a cultura e os saberes da população dos Açores atribuem sentido às visões artísticas contemporâneas.
Há a Lagoa das Sete Cidades, o Vale das Furnas, a Lagoa do Fogo, a paisagem verdejante, as festas religiosas, o festival Tremor e, desde Março, também voos de baixo custo para Ponta Delgada e o Centro de Artes Contemporâneas Arquipélago, na Ribeira Grande. Mas a principal riqueza da ilha de São Miguel, a maior do arquipélago dos Açores, são as suas gentes. A quinta edição do festival Walk&Talk reflectiu-o de forma transparente.
No início, Jesse James e Diana Sousa, os fundadores do acontecimento, sentiam que a arte contemporânea estava dissociada da vida na região. O que fazer? Se as pessoas não tinham curiosidade por arte, talvez se levassem directamente a arte até elas a sua sensibilidade se transformasse. Dito e feito.
Nos primeiros anos o Walk&Talk ganhou visibilidade pelos convites a artistas que transformaram a região de Ponta Delgada, e zonas adjacentes, numa galeria a céu aberto. Hoje qualquer pessoa visita a área e descobre um circuito de arte pública, com mais de 80 obras, entre murais, instalações e esculturas, pertencentes a artistas como Vhils, Clemens Behr ou Mark Jenkis.
Mas o acontecimento não podia ficar por ali. Havia que envolver mais a comunidade e fazer participar os que vêm de fora (artistas, designers, músicos, jornalistas, público) na vida da ilha, estimulando a troca de experiências, fazendo sobressair a cultura e a memória como projecção de futuro, o estilo de vida humanizado, o papel das relações de proximidade, o ambiente de autenticidade ou o saber expresso em técnicas que se foram tornando raras.
O Walk&Talk é isso. Recebe, envolve, cria comunidade, promove exposições, residências artísticas, concertos, palestras – olhos nos olhos, ao longo de duas ou mais semanas. Percebe que o futuro se cria com histórias de vida. Que o diga Alexandre Farto, ou seja Vhils, presença habitual no festival desde o início.
No ano passado tinha estado em Rabo de Peixe, recolhendo narrativas de pescadores, retratando-os e criando a partir daí uma série de murais. Este ano fomos encontrá-lo num estaleiro a criar uma peça a partir de um barco que ia para abate. Cravada na madeira, lá temos inscrita a memória do lugar, da existência do próprio barco e das muitas pessoas que com ele foram lidando.
“Parte deste trabalho é a continuação do que havia feito no ano passado, a partir de retratos que fiz, numa homenagem à vida de alguns pessoas desta comunidade de pescadores, só que desta vez a partir da intervenção neste barco que tem mais de 50 anos”, diz-nos ele. “Como sempre no meu trabalho, trata-se de tornar visível o invisível, com material recolhido aqui, criando ao mesmo tempo uma ligação com o imaginário da área de Rabo de Peixe.”
Não muito longe, na povoação de Lagoa, encontra-se um magnífico mural de grande escala concebido pelo artista sul-africano Ricky Gordon, mais conhecido por Freddy Sam. Tal como para Vhils, no seu trabalho existe uma orientação de cariz social, não surpreendendo que o conhecimento da população local onde vai intervir seja uma preocupação central. Em Lagoa, acabou por ser acolhido por Graça Rebelo, uma empregada doméstica que partilha a sua habitação com mais sete pessoas, entre elas quatro filhos. Dois deles, Rodrigo e João, e o amigo Cláudio, acabaram por ser fotografados por Gordon, servindo de inspiração para o mural que envolve a localidade.
Quando ali chegou, Gordon imaginava que lhe iriam contar histórias românticas sobre a vida no mar e a relação com a natureza. Depois de um dia entre os pescadores, percebeu que estava enganado. A ligação deles com o mar não era idealizada. A vida era dura. Ficou sem saber o que fazer. Apenas quando percebeu o nome da rua – Solidariedade – onde se situava o muro que lhe haviam destinado se fez luz.
O conceito estava encontrado. E foi assim que representou Rodrigo e João, e o amigo Cláudio, no oceano, com uma linha dourada a simbolizar a comunhão na comunidade de Lagoa. “Este mural é uma homenagem à beleza e à solidariedade desta comunidade”, escreveu ele.
Durante uma semana foi visita diária em casa de Graça Rebelo. “Era mais um, como nós”, diz ela. Apesar de Graça não falar inglês, isso não inviabilizou a comunicação. Fez-lhe comida vegetariana todos os dias e, ao lanche, havia sempre um bolo. “Quando começou a pintar o muro, a população estava toda calada, sem saber o que pensar”, conta, mas depois foram-no encorajando e, no final, “toda a gente tirava fotos”, conclui com orgulho. “No fim de contas, nem todos têm os filhos numa pintura.”
Um dos filhos, João, de 20 anos, haverá de dizer-nos mais tarde, no porto de pesca da localidade, enquanto conserta umas redes, que não assistiu ao processo de feitura do mural porque tinha o mar à sua espera todos os dias, mas percebe-se o regozijo no olhar. “Eu sou aquele que na pintura está a olhar para cima."
O centro do mundo
Em Forno de Cal, perto de São Roque, fomos encontrar um outro artista, o italiano Jacopo Ceccarelli (ou seja, 2501), em processo de criação, suspenso numa plataforma, enquanto dava os últimos retoques nas formas geométricas do seu mural. A sua actividade é multifacetada (pintura, escultura, instalação, vídeo, documentário), sendo os murais apenas uma das suas vertentes.
“Na minha actividade o vídeo é muito importante, sendo os murais a representação gráfica das interacções que estabeleço durante o processo de criação”, explica ele. Antes de chegar a São Miguel, esteve a viajar de carro e a filmar nos EUA durante 40 dias, preparando um documentário para apresentar em Dezembro na feira de arte Basel, em Miami, em Dezembro.
Os Açores, diz ele, também vão constar desse documentário, e a obra que agora completa é uma alusão ao arquipélago. “No meio estão as nove ilhas”, aponta na direcção do mural, “ladeadas pela Europa e pela América do Norte. Os Açores interessam-me porque são uma espécie de centro do mundo e, ao mesmo tempo, um local meio perdido no meio do oceano”, diz, explicitando que “as formas circulares” estão sempre presentes nas suas peças. E a relação com a comunidade também. “Os Açores têm uma forte relação com a América, por isso interessa-me perceber nas conversas com as pessoas o que significa a América para elas.”
Quem conheceu muitos açorianos durante a sua residência foi o bailarino e coreógrafo Luís Guerra, que ali criou o espectáculo Espectro com o Núcleo de Artes Performativas. Ou a actriz Raquel André, que tem vindo a coleccionar encontros, com algum grau de intimidade, que regista em fotografias. Desde Maio do ano passado foram 73 encontros, 30 com homens e 43 com mulheres.
Na conversa pública sobre o projecto, esclareceu que o mesmo se chama Colecção de Amantes e que a ideia surgiu no contexto de uma tese de mestrado que está a desenvolver, da qual resultará um espectáculo a apresentar em Setembro no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, e no Tempo Festival, no Rio de Janeiro. Como em muitos outros trabalhos artísticos contemporâneos, trata-se de explorar as fronteiras, por vezes ténues, entre ficção e realidade, privacidade e público, efemeridade e perpetuidade.
A conversa decorreu na galeria Walk&Talk, no coração da zona histórica de Ponta Delgada, onde durante a noite se sociabiliza e decorrem apresentações, sessões DJ ou a maior parte dos concertos. Foi aí que vimos as americanas THEESatisfaction, pelos caminhos do hip-hop futurista, ou o projecto de paisagens digitais Raw Forest, embora Tó Trips tenha apresentado a tranquilidade acústica da sua música no espaço Arco 8.
É também na galeria que está patente a exposição colectiva Gente Feliz com Lágrimas, com curadoria de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira; e onde durante o dia decorrem residências, como a de artesanato, coordenada pelo designer Miguel Flor.
“Era uma coisa que queria fazer há algum tempo, esse cruzamento entre designers e artesãos”, diz-nos ele, explicitando que o desafio foi endereçado desta vez aos designers Júlio Dolbeth, Célia Esteves, Susana Bettencourt, que se juntaram "aos repetentes Rui Freitas e Carolina Brito”.
“Eles definiram o que queriam fazer e quando chegaram aqui já havia ideias sobre o que iríamos desenvolver. O Rui criou uma gambiarra em vime com a ajuda do artesão; a Carolina criou mochilas de vime e tecido; o Júlio criou registos com aplicações de escamas de peixes; a Susana, que já operava com materiais tradicionais, aqui veio trabalhar com a Dona Fátima, que tem umas mãos de fada, em bordados; e a Célia criou tapetes com a ajuda de quatro tecedeiras daqui.”
Na criação de todas as peças imaginadas pelos designers, que no futuro próximo serão comercializadas pela marca ByWalk&Talk, foram fundamentais artesão, tecedeiras e bordadeira. “O Senhor João é incrível”, diz Miguel Flor, afirmando que vê-lo trabalhar é um acontecimento. “Às vezes parece um bailarino, contorcido, a agarrar o vime com os pés.”
É verdade. João Andrade, 63 anos, 52 deles dedicados ao artesanato, agarra o vime com os pés nus, ao mesmo tempo que fala connosco. “Isto é muito bom para mim, porque se trocam impressões sobre várias artes e eu, que nunca sei tudo, estou sempre a aprender”, afirma. “Às vezes vêm-me com ideias e eu digo-lhes: ‘isso não vai dar certo com o vime’, mas vou para casa a pensar e no dia seguinte digo-lhes que, afinal, é possível.”
O seu ofício, que um dos seus filhos “talvez venha a seguir”, já não é muito comum na ilha. Mas nas residências artísticas revela-se essencial. O artista norte-americano Brad Downey, um dos nomes mais destacados deste ano, aprendeu a trabalhar o vime com ele e o projecto que criou incluiu uma peça desse material. Com a ajuda de João, o americano criou uma esfera em vime, dentro da qual pôs garrafas que encheu com o seu próprio ar; atirou-as depois ao mar, presas a uma pedra, para que aí se desintegrem.
Chamou à operação artística Volta a Vir, como o barco do pescador Paulinho, com quem foi atirar a peça ao mar, registando tudo em vídeo, porque no seu projecto o que conta é o processo e a forma como se vão congregando diversas pessoas à sua volta.
Desencontros e encontros
Claro que por vezes, nestas dinâmicas onde estão inseridos agentes com níveis de leitura diferenciados sobre a arte contemporânea, os conflitos acontecem. Mas a beleza também reside na hipótese de fazer acontecer diálogo entre diferentes, a partir de um território, como o da arte, de tensões e tangentes.
O arquitecto Nuno Paiva viu a sua rede espelhada ser apreendida pela Polícia Marítima, por desencontros de comunicação entre autoridades, quando a punha a boiar na baía. A peça de Dalila Gonçalves, que dificulta a passagem dos transeuntes numa artéria estreita, foi encostada a um canto pelos comerciantes. Miguel Januário (±MaisMenos±) foi alvo de comentários mais intempestivos quando se pôs a andar no meio do trânsito com a sua singular bicicleta com altifalante. E nem todos gostaram de ver o mural florido do argentino Pastel, na marginal, ser concretizado sobre a obra dos Arm Collective que ali estava desde 2011.
Mas a harmonia existe, entre criadores, fazedores e população. É isso que se sente quando se entra na Tipografia Micaelense, onde os designers Nuno Coelho e Nuno Neves, das publicações Serrote, desenvolveram um projecto de comunicação e criação de embalagens para o chá da fábrica Gorreana, aberta desde 1883.
A ideia começou a ser desenvolvida em Maio, conta-nos Nuno Coelho, quando visitou as fábricas, que “sabia serem únicas na Europa e um autêntico museu vivo porque ainda são utilizados métodos tradicionais”. Nesse primeiro embate não ficou convencido com o que encontrou ao nível da comunicação visual, sentindo que não traduziam a experiência, a história e o legado da fábrica e do chá. Mergulhou em arquivos e descobriu rótulos e algumas publicidades antigas que lhe interessaram. Foi a partir daí que foram concebidas as novas imagens, com a ajuda do tipógrafo Dinis Botelho, que utilizou técnicas já em desuso.
Dois dias depois, na fábrica Gorreana, na zona da Maia, envolvida pelas verdejantes plantações de chá, lá estavam as embalagens contemporâneas, simples e ao mesmo tempo comunicando um saber de muitos anos, feitas a partir de imagens resgatadas ao passado e recorrendo a processos tipográficos recuperados.
Duas funcionárias da fábrica tratavam de armazenar o chá nas novas embalagens, enquanto à volta turistas mostravam curiosidade. Queriam perceber o processo. Interrogavam-se sobre como a comunidade local integrava aquelas experiências na sua vida. Não muito longe estava o paradisíaco Vale das Furnas, mas era ali que queriam estar, envolvidos por saberes antigos que atribuem sentido a visões contemporâneas, num diálogo dinâmico entre diferentes pessoas, a maior obra de arte dos Açores."
“Parte deste trabalho é a continuação do que havia feito no ano passado, a partir de retratos que fiz, numa homenagem à vida de alguns pessoas desta comunidade de pescadores, só que desta vez a partir da intervenção neste barco que tem mais de 50 anos”, diz-nos ele. “Como sempre no meu trabalho, trata-se de tornar visível o invisível, com material recolhido aqui, criando ao mesmo tempo uma ligação com o imaginário da área de Rabo de Peixe.”
Não muito longe, na povoação de Lagoa, encontra-se um magnífico mural de grande escala concebido pelo artista sul-africano Ricky Gordon, mais conhecido por Freddy Sam. Tal como para Vhils, no seu trabalho existe uma orientação de cariz social, não surpreendendo que o conhecimento da população local onde vai intervir seja uma preocupação central. Em Lagoa, acabou por ser acolhido por Graça Rebelo, uma empregada doméstica que partilha a sua habitação com mais sete pessoas, entre elas quatro filhos. Dois deles, Rodrigo e João, e o amigo Cláudio, acabaram por ser fotografados por Gordon, servindo de inspiração para o mural que envolve a localidade.
Quando ali chegou, Gordon imaginava que lhe iriam contar histórias românticas sobre a vida no mar e a relação com a natureza. Depois de um dia entre os pescadores, percebeu que estava enganado. A ligação deles com o mar não era idealizada. A vida era dura. Ficou sem saber o que fazer. Apenas quando percebeu o nome da rua – Solidariedade – onde se situava o muro que lhe haviam destinado se fez luz.
O conceito estava encontrado. E foi assim que representou Rodrigo e João, e o amigo Cláudio, no oceano, com uma linha dourada a simbolizar a comunhão na comunidade de Lagoa. “Este mural é uma homenagem à beleza e à solidariedade desta comunidade”, escreveu ele.
Durante uma semana foi visita diária em casa de Graça Rebelo. “Era mais um, como nós”, diz ela. Apesar de Graça não falar inglês, isso não inviabilizou a comunicação. Fez-lhe comida vegetariana todos os dias e, ao lanche, havia sempre um bolo. “Quando começou a pintar o muro, a população estava toda calada, sem saber o que pensar”, conta, mas depois foram-no encorajando e, no final, “toda a gente tirava fotos”, conclui com orgulho. “No fim de contas, nem todos têm os filhos numa pintura.”
Um dos filhos, João, de 20 anos, haverá de dizer-nos mais tarde, no porto de pesca da localidade, enquanto conserta umas redes, que não assistiu ao processo de feitura do mural porque tinha o mar à sua espera todos os dias, mas percebe-se o regozijo no olhar. “Eu sou aquele que na pintura está a olhar para cima."
O centro do mundo
Em Forno de Cal, perto de São Roque, fomos encontrar um outro artista, o italiano Jacopo Ceccarelli (ou seja, 2501), em processo de criação, suspenso numa plataforma, enquanto dava os últimos retoques nas formas geométricas do seu mural. A sua actividade é multifacetada (pintura, escultura, instalação, vídeo, documentário), sendo os murais apenas uma das suas vertentes.
“Na minha actividade o vídeo é muito importante, sendo os murais a representação gráfica das interacções que estabeleço durante o processo de criação”, explica ele. Antes de chegar a São Miguel, esteve a viajar de carro e a filmar nos EUA durante 40 dias, preparando um documentário para apresentar em Dezembro na feira de arte Basel, em Miami, em Dezembro.
Os Açores, diz ele, também vão constar desse documentário, e a obra que agora completa é uma alusão ao arquipélago. “No meio estão as nove ilhas”, aponta na direcção do mural, “ladeadas pela Europa e pela América do Norte. Os Açores interessam-me porque são uma espécie de centro do mundo e, ao mesmo tempo, um local meio perdido no meio do oceano”, diz, explicitando que “as formas circulares” estão sempre presentes nas suas peças. E a relação com a comunidade também. “Os Açores têm uma forte relação com a América, por isso interessa-me perceber nas conversas com as pessoas o que significa a América para elas.”
Quem conheceu muitos açorianos durante a sua residência foi o bailarino e coreógrafo Luís Guerra, que ali criou o espectáculo Espectro com o Núcleo de Artes Performativas. Ou a actriz Raquel André, que tem vindo a coleccionar encontros, com algum grau de intimidade, que regista em fotografias. Desde Maio do ano passado foram 73 encontros, 30 com homens e 43 com mulheres.
Na conversa pública sobre o projecto, esclareceu que o mesmo se chama Colecção de Amantes e que a ideia surgiu no contexto de uma tese de mestrado que está a desenvolver, da qual resultará um espectáculo a apresentar em Setembro no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, e no Tempo Festival, no Rio de Janeiro. Como em muitos outros trabalhos artísticos contemporâneos, trata-se de explorar as fronteiras, por vezes ténues, entre ficção e realidade, privacidade e público, efemeridade e perpetuidade.
A conversa decorreu na galeria Walk&Talk, no coração da zona histórica de Ponta Delgada, onde durante a noite se sociabiliza e decorrem apresentações, sessões DJ ou a maior parte dos concertos. Foi aí que vimos as americanas THEESatisfaction, pelos caminhos do hip-hop futurista, ou o projecto de paisagens digitais Raw Forest, embora Tó Trips tenha apresentado a tranquilidade acústica da sua música no espaço Arco 8.
É também na galeria que está patente a exposição colectiva Gente Feliz com Lágrimas, com curadoria de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira; e onde durante o dia decorrem residências, como a de artesanato, coordenada pelo designer Miguel Flor.
“Era uma coisa que queria fazer há algum tempo, esse cruzamento entre designers e artesãos”, diz-nos ele, explicitando que o desafio foi endereçado desta vez aos designers Júlio Dolbeth, Célia Esteves, Susana Bettencourt, que se juntaram "aos repetentes Rui Freitas e Carolina Brito”.
“Eles definiram o que queriam fazer e quando chegaram aqui já havia ideias sobre o que iríamos desenvolver. O Rui criou uma gambiarra em vime com a ajuda do artesão; a Carolina criou mochilas de vime e tecido; o Júlio criou registos com aplicações de escamas de peixes; a Susana, que já operava com materiais tradicionais, aqui veio trabalhar com a Dona Fátima, que tem umas mãos de fada, em bordados; e a Célia criou tapetes com a ajuda de quatro tecedeiras daqui.”
Na criação de todas as peças imaginadas pelos designers, que no futuro próximo serão comercializadas pela marca ByWalk&Talk, foram fundamentais artesão, tecedeiras e bordadeira. “O Senhor João é incrível”, diz Miguel Flor, afirmando que vê-lo trabalhar é um acontecimento. “Às vezes parece um bailarino, contorcido, a agarrar o vime com os pés.”
É verdade. João Andrade, 63 anos, 52 deles dedicados ao artesanato, agarra o vime com os pés nus, ao mesmo tempo que fala connosco. “Isto é muito bom para mim, porque se trocam impressões sobre várias artes e eu, que nunca sei tudo, estou sempre a aprender”, afirma. “Às vezes vêm-me com ideias e eu digo-lhes: ‘isso não vai dar certo com o vime’, mas vou para casa a pensar e no dia seguinte digo-lhes que, afinal, é possível.”
O seu ofício, que um dos seus filhos “talvez venha a seguir”, já não é muito comum na ilha. Mas nas residências artísticas revela-se essencial. O artista norte-americano Brad Downey, um dos nomes mais destacados deste ano, aprendeu a trabalhar o vime com ele e o projecto que criou incluiu uma peça desse material. Com a ajuda de João, o americano criou uma esfera em vime, dentro da qual pôs garrafas que encheu com o seu próprio ar; atirou-as depois ao mar, presas a uma pedra, para que aí se desintegrem.
Chamou à operação artística Volta a Vir, como o barco do pescador Paulinho, com quem foi atirar a peça ao mar, registando tudo em vídeo, porque no seu projecto o que conta é o processo e a forma como se vão congregando diversas pessoas à sua volta.
Desencontros e encontros
Claro que por vezes, nestas dinâmicas onde estão inseridos agentes com níveis de leitura diferenciados sobre a arte contemporânea, os conflitos acontecem. Mas a beleza também reside na hipótese de fazer acontecer diálogo entre diferentes, a partir de um território, como o da arte, de tensões e tangentes.
O arquitecto Nuno Paiva viu a sua rede espelhada ser apreendida pela Polícia Marítima, por desencontros de comunicação entre autoridades, quando a punha a boiar na baía. A peça de Dalila Gonçalves, que dificulta a passagem dos transeuntes numa artéria estreita, foi encostada a um canto pelos comerciantes. Miguel Januário (±MaisMenos±) foi alvo de comentários mais intempestivos quando se pôs a andar no meio do trânsito com a sua singular bicicleta com altifalante. E nem todos gostaram de ver o mural florido do argentino Pastel, na marginal, ser concretizado sobre a obra dos Arm Collective que ali estava desde 2011.
Mas a harmonia existe, entre criadores, fazedores e população. É isso que se sente quando se entra na Tipografia Micaelense, onde os designers Nuno Coelho e Nuno Neves, das publicações Serrote, desenvolveram um projecto de comunicação e criação de embalagens para o chá da fábrica Gorreana, aberta desde 1883.
A ideia começou a ser desenvolvida em Maio, conta-nos Nuno Coelho, quando visitou as fábricas, que “sabia serem únicas na Europa e um autêntico museu vivo porque ainda são utilizados métodos tradicionais”. Nesse primeiro embate não ficou convencido com o que encontrou ao nível da comunicação visual, sentindo que não traduziam a experiência, a história e o legado da fábrica e do chá. Mergulhou em arquivos e descobriu rótulos e algumas publicidades antigas que lhe interessaram. Foi a partir daí que foram concebidas as novas imagens, com a ajuda do tipógrafo Dinis Botelho, que utilizou técnicas já em desuso.
Dois dias depois, na fábrica Gorreana, na zona da Maia, envolvida pelas verdejantes plantações de chá, lá estavam as embalagens contemporâneas, simples e ao mesmo tempo comunicando um saber de muitos anos, feitas a partir de imagens resgatadas ao passado e recorrendo a processos tipográficos recuperados.
Duas funcionárias da fábrica tratavam de armazenar o chá nas novas embalagens, enquanto à volta turistas mostravam curiosidade. Queriam perceber o processo. Interrogavam-se sobre como a comunidade local integrava aquelas experiências na sua vida. Não muito longe estava o paradisíaco Vale das Furnas, mas era ali que queriam estar, envolvidos por saberes antigos que atribuem sentido a visões contemporâneas, num diálogo dinâmico entre diferentes pessoas, a maior obra de arte dos Açores."
Vítor Belanciano, Público
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