segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Empresária com atitude de jornalista

Catarina Portas desfia o novelo do seu percurso profissional à revista Recursos Humanos de Julho/Agosto 2010. Fala da iniciação à carreira de jornalista, da passagem pela televisão, do amor pelo cinema. Revela como nasceram A Vida Portuguesa e o Quiosque de Refresco, explica que não quis abrir mão das "relíquias do quotidiano do país" e alegra-se pelo facto de se ter levantado entretanto "a tampa do alçapão do passado". E, numa edição especial "RH no Feminino", avança: "Nos negócios, não acredito demasiadamente num instinto ou forma feminina totalmente diferente de fazer as coisas. Mas acredito profunda e convictamente nas mulheres, na sua força, pragmatismo e agilidade."

Recursos Humanos Magazine: A sua actividade, quer enquanto profissional liberal quer como empreendedora e cívica, tem sido muito diversificada em termos de campos de actuação e interesses. É jornalista desde 1988, tendo começado a sua actividade profissional como jornalista na Correio da Manhã Rádio…

Catarina Portas: Comecei muito cedo, por estar por ali, que por acaso era o sítio certo no momento certo. Esse sítio era O Independente, um jornal que então começava, a querer ser diferente de tudo o que existia, dirigido pelo Miguel Esteves Cardoso e o Paulo Portas, meu irmão. Eu tinha 19 anos e queria ser chapeleira de alta-costura, mas rondava os amigos metidos nessa aventura e, no meio do sufoco, alguém disse: “Faz tu!”. E eu comecei a escrever. Eu estava a aprender mas não era grave, estávamos todos. Depois candidatei-me à CMR, pensando que se queria de facto ser jornalista talvez fosse melhor ir para um sítio onde não conhecesse ninguém, onde me julgassem primeiro pelo meu trabalho. Dirigida pelo Rui Pego, era uma rádio nova e agitada e aí fiz programas dedicados à música francesa ou à moda e amigos que ficaram para sempre, como a Margarida Pinto Correia ou o Rui Vargas. Ia mantendo uma colaboração com O Independente; foi graças a isso que a Maria Elisa me convidou para redactora da Marie Claire, então nos primeiros números. Aí se deu a minha verdadeira formação, numa revista mensal onde pude fazer de tudo, com tempo para a investigação, ao longo de dois anos e meio: entrevista, reportagem, shoppings, até culinária. Em 1991, ganhei os dois Prémios Revelação de Jornalismo, o Gazeta e o do Clube Português de Imprensa, com reportagens publicadas na Marie Claire sobre Braga e o Rui Reininho. Só então a sempre insegura autodidacta sossegou um pouco e ganhou alguma confiança... Ter a coragem de deixar a Marie Claire para experimentar outros meios e aprender mais foi a consequência.

RHM: Em que ano ingressou na RTP?

CP:
Em 1992, dei o salto para a televisão. A RTP contratou um grupo alargado de jovens jornalistas, para colmatar o êxodo de profissionais para as televisões privadas que nesse ano começaram a emitir. Comecei pela informação diária, durante um ano, como jornalista de sociedade e cultura do 24 Horas e Telejornal. Foi um tempo muito excitante, em que aprendi muito, sobre o profissionalismo no meio do caos reinante na informação diária, por exemplo.

RHM: Qual dos programas em que foi co-autora e co-apresentadora foi o mais gratificante para si?

CP:
A informação diária foi um excelente treino, mas frustrava-me o imediatismo do trabalho. Foi com a Manuela Moura Guedes, quando ela deixou a apresentação do Telejornal, que me estreei noutro género de programas como o Raios e Coriscos, uma tentativa mais solta de tratar alguns temas de sociedade. Depois foi o Frou-Frou, um programa de olhar feminino com uma bela equipa, e, na RTP2, o Falatório/Juventude e o Onda Curta, dedicado às curtas que então se começavam a afirmar. Por último, o Sofá Vermelho, na SIC, foi certamente aquele que me deu mais gozo, pois o resultado final foi o mais parecido com aquilo que tínhamos imaginado de início, o que, em televisão, com tantos intermediários e circunstâncias, não é fácil. Infelizmente, a SIC desrespeitou o acordo com o MC, desprogramando estes pequenos três minutos do prime time. Mas quando isso acontecia, não era raro os livros esgotarem – foi uma tentativa de falar de livros, de transmitir a vontade de ler um livro, como uma actividade normal e quotidiana que funcionava.

RHM: A partir de 1997 começou a apresentar programas ligados ao cinema. Foi por essa altura que nasceu a paixão pela sétima arte?

CP:
Sempre gostei de cinema. Durante os últimos anos de liceu, saía das aulas e rumava diariamente para a sessão das 18h30 min da Cinemateca. O gosto pelo cinema, temo-lo todos na família, por culpa do meu pai, crítico de cinema na sua juventude e fervoroso cinéfilo. Após uma ida ao Festival de Curtas de Vila do Conde, pressentindo a dinâmica do género, candidatei-me a apresentar o Onda Curta. Já então me aproximava do documentário, trabalhando com a Filmes do Tejo, da minha amiga Maria João Mayer, no desenvolvimento de projectos de ficção e documentário. […]

RHM: Em 2001 recebeu, com o filme Bruta Flor do Querer, o Prémio Melhor Curta-metragem Documental e o Prémio dos Cineclubes. Qual a importância que atribui a estas duas distinções?

CP: Fazer o filme é que foi importante. É apenas um exercício de escola, estava a fazer um curso de documentário nos Ateliers Varan em Paris e esta curta era o trabalho final. Filmado numa loja de cartazes de cinema originais em Paris, convivendo com os coleccionadores que a frequentam – verdadeiros cinéfilos fetichistas. Digamos que é um filme sobre o amor pelo cinema, um certo tipo de amor – pareceu-me o tema adequado a um primeiro filme. Queria continuar pelo cinema, ainda fiz mais umas pequenas coisas mas, enquanto esperava conseguir montar os meus projectos e me ocupava numa intensa investigação, proposta pelo realizador João Maia para um filme sobre o António Variações, surgiu a ideia que viria a dar n’A Vida Portuguesa... […]

RHM: Em que contexto surgiu o projecto Uma Casa Portuguesa?

CP:
Estava com pouco trabalho, esperando a viabilidade de projectos de cinema, e comecei a imaginar livros que também gostaria de fazer. Pensei num livro sobre a vida quotidiana em Portugal no século XX, que tanto influencia o país que somos e que a minha geração tanto desconhecia (as coisas mudaram entretanto, levantou-se a tampa do alçapão do passado, ainda bem). Lembrei-me de fotografar uma despensa de época e de um shopping que tinha feito para a Marie Claire, baseado nas crónicas A Causa das Coisas, do Miguel Esteves Cardoso, com esses tais produtos antigos que ele glosava no Expresso. E quando comecei a investigar as marcas, fábricas e produtos antigos portugueses confirmei que uma quantidade de produtos ainda existia com embalagens originais (dos anos 20 a 60 do século passado, pois tivemos um mercado muito fechado e pouco concorrencial durante o regime salazarista). Mas também percebi que muitos destes produtos, face a novos concorrentes importados, estavam a desaparecer rapidamente. Ora, eu sempre lhes achei graça, como relíquias do quotidiano do país. O primeiro impulso foi essencialmente egoísta: eu não queria que eles desaparecessem. E comecei a fazer um exercício de imaginação. Como tornar apelativos estes produtos para um novo público? Imaginei agrupá-los em caixas temáticas, com um livrinho que lhes contasse as histórias. Poderia ser este design histórico do quotidiano, tão ingénuo e divertido, uma vantagem no mundo actual, onde o design está tão (sobre)valorizado? Seria possível passar estes produtos quase esquecidos nas drogarias e nas mercearias para um outro mercado, o das lojas de design e de museus? E, graças a esse novo público, valorizar e ajudar a salvar a manufactura portuguesa? Funcionou. […]

RHM: Como amadureceu o projecto até chegar à marca A Vida Portuguesa, com a loja de vendas ao público na Rua Anchieta e toda a organização que requer uma estrutura desta envergadura?

CP: Falei da ideia a várias pessoas e uma amiga minha interessou-se. Fomos às fábricas e fizemos as primeiras caixas da marca Uma Casa Portuguesa no Natal de 2004 para a Mousse, uma loja de design. Correu tão bem que percebemos que tinha pernas para andar. Aperfeiçoámos o produto e, graças a uma parceria com a Saboaria Confiança, fomos a uma feira internacional importantíssima, a Maison et Objet em Paris. Vendendo para lojas como a Conran Shop ou a Designer’s Guild em Londres, tornou-se claro que a apetência era mais do que local e nostálgica. Mas, em 2007, a sociedade não corria bem e decidi recomeçar tudo sozinha. Em Maio de 2007 nasceu A Vida Portuguesa, um nome mais limpo de conotações e também mais abrangente e adequado a um projecto mais vasto. E já com loja no Chiado. […]

RHM: Os negócios têm-lhe corrido de feição. Foi o sucesso experimentado com A Vida Portuguesa que a levou a avançar para o seu projecto mais recente dos quiosques de Lisboa?

CP: Quando me surgiu a ideia d’A Vida Portuguesa, comecei naturalmente a aplicar o mesmo modelo de pensamento a outros temas. Como pegar numa herança antiga e recuperá-la para os dias de hoje? Sempre gostei de quiosques e afligia-me ver tantos e tão bonitos fechados e degradados. Quando a Câmara Municipal de Lisboa colocou a concurso a concessão de três quiosques antigos no centro da cidade, desafiei o João Regal, da DeliDelux, para este projecto de recuperação. Os quiosques do Largo Camões, Príncipe Real e Praça das Flores foram integralmente recuperados e apetrechados para vender as bebidas frescas tradicionais lisboetas (em vez dos habituais e monótonos refrigerantes engarrafados): a limonada, o capilé, a groselha, a orchata, o leite perfumado. E a ginginha, claro. Sabores próprios e antigos, fresquíssimos, sem conservantes mas bem conservados porque recriados para os dias de hoje. Tudo em louça descartável e biodegradável (copos transparentes em PLA, amido de milho, em vez de plástico). A preços acessíveis porque este é um espaço de todos, com esplanada, para desfrutar sem pressas. […]

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