segunda-feira, 20 de abril de 2015

O luxo da autenticidades

"Luxo pode ser ter dinheiro para jóias ou grandes marcas. Mas também pode ser ter tempo. Um estilo de vida humanizado. Um ambiente onde se respira autenticidade. Estabelecer uma relação afectiva com o que se consome. Acreditar na memória como forma de projectar o futuro. E privilegiar as ligações tangíveis ou as relações de proximidade. 

“A nova definição de luxo não é grandes marcas, semelhantes em todo o lado, mas a autenticidade, a história, a memória, porque é isso que atrai as pessoas às cidades”, arriscou o director da Monocle, Tyler Brûle, este sábado, em Lisboa, na primeira conferência internacional desta revista de tendências.
O ideal contemporâneo de qualidade de vida, de lazer, de consumo cultural ou de sociabilização que emite a influente revista britânica de impacto global passa por aí. Não surpreende, por isso, que para a conferência (The Monocle Quality Of Life) tenha escolhido um painel que revelou personalidades, projectos e práticas de todo o mundo, que acabam por atribuir sentido a essas propriedades.
Também não espantou a escolha de Lisboa. Por um lado, é a 9ª cidade do mundo onde a revista tem mais leitores e, por outro, a conferência, que aconteceu no hotel Ritz, teve o apoio da Secretaria de Estado do Turismo.
Para além de jornalistas, estiveram presentes mais de 150 delegados, dos EUA, Japão, Austrália e Europa, entre empresários, políticos, designers ou arquitectos, a maioria representando empresas ou instituições que para fazerem parte da experiência Monocle, durante três dias, desembolsaram 1.500 euros. “É muito? Depende da perspectiva”, diz-nos o búlgaro Ivan Koleliev, manager numa empresa global de consultoria, sediada no Canadá, ligada a projectos científicos. “Não é apenas o conhecimento, é também a interacção ou as novas cooperações, ou seja, isto é também um investimento.”
Durante a manhã de sábado, nos diferentes painéis, os desafios do digital estiveram em evidência. Quando se discutiram os meios de comunicação, por exemplo. O jornalista holandês Hans Nijenhuis, do grupo de média NRC, defendeu a proximidade com os leitores, dizendo não perceber a tendência para as redacções se afastarem dos centros das cidades.
“Os jornalistas têm de estar no meio das pessoas”, disse, exemplificando que o NRC tem o seu refeitório aberto ao público, possibilitando a interacção com os jornalistas, e realiza regularmente no seu espaço encontros, palestras e debates.
No núcleo da maior parte das intervenções esteve a noção de “marca”, essa ideia de que é possível uma publicação estar agregada a produtos ou acontecimentos se tiver qualidade e credibilidade. “Um bom exemplo é este evento, o futuro passa por aqui, pelas experiências”, atirou o americano Andrew Keen, que acabou de editar o livro The Internet Is Not The Answer, lembrando a história de sucesso da Monocle que, para além de revista, é também estação de rádio, cafés, lojas, dois jornais semestrais, livros e agora também uma conferência.  
O tipógrafo e designer alemão Erik Spiekermann também defendeu que as publicações têm de se reinventar fora do digital, dizendo que o modelo de negócio gratuito não funciona. “A Internet é infinita, o que é fantástico, mas as pessoas precisam de coisas que têm fim. Os jornais são isso. É preciso seleccionar”, concordou Hans Nijenhuis.
“Se dermos às pessoas apenas o que elas querem, sem irmos mais além, fazendo um jornalismo de contabilização de cliques da Internet, qualquer dia só publicamos vídeos de gatos”, ironizou Andrew Keen, comparando o regresso do vinil – no campo da música – à reacção que prevê virá a acontecer com os jornais.
“Irá haver uma reacção dos nativos digitais”, disse, acrescentando que é errado achar que os jovens não lêem artigos longos. “Todos queremos qualidade e boas histórias, de preferência inclusivas, onde nos possamos rever, para além da questão das idades”, concluiu Dorthe Riis, da TV dinamarquesa.
Os mesmos conceitos estiveram na base do painel seguinte, onde o ponto de partida era: “Como construir a casa perfeita”, em cidades que se querem inclusivas e dinâmicas. O arquitecto brasileiro Isay Weinfeld disse que tudo passa “por ouvir o cliente e respeitá-lo”, enquanto a designer e directora criativa inglesa Ilse Crawford, conhecida por criar “espaços públicos onde as pessoas se sentem em casa”, defendeu que as habitações têm de ser pensadas realmente para serem vividas.
“Qualidade de vida é escala humana, densidade, maximizar de forma integrada pequenos espaços e olhar os problemas de forma humana, em conjunto com os clientes, criando infra-estruturas inteiras, mas que guardem espaço para a mudança”, defendeu o arquitecto de São Paulo, alegando que a ideia futurista de “casa inteligente” já faz parte do presente, mas não é isso que é decisivo. “O digital está lá, faz parte da casa, mas a sua concepção não deve estar subordinada a esse facto.”
O sueco Oscar Engelbert, que constrói e vende habitações, argumentou que, para além da qualidade, o que acaba por criar mais-valia e apetência no comprador é a memória do edifício.
Como num museu. “Porque é que em plena idade digital as pessoas vão mais do que nunca a museus? Porque querem autenticidade e qualidade. Querem o que apenas podem ver nos museus. Há uns anos os museus assustaram-se com a idade digital. Mas a ‘grande arte’ é sempre contemporânea”, afirmou o director do museu londrino Victoria and Albert, o inglês Martin Roth, no painel onde se falou do papel da cultura nas cidades, em particular os museus.
“Quanto mais digitais somos, mais queremos a experiência da coisa autêntica", afirmou o historiador de arte Taco Dibbits, do Rijksmuseum da Holanda, secundado pelo director do Museu Palestino, Jack Persekian: “as pessoas querem sentir de forma tangível. Querem tocar. Querem sentir que pertencem e têm desejo de partilhar essa sensação de pertença com outras.”
Falou-se também de identidades, claro. Em países estabelecidos, como a Inglaterra ou a Holanda, "as colecções pertencem ao mundo, deve existir partilha da memória", analisou Martin Roth. No caso palestino, "olha-se mais o futuro", expôs Persekian, acrescentando que é uma responsabilidade pensar “como é que um museu pode definir uma nação.”
De preservação também se falou a propósito do regresso dos fazedores, dos artífices, das técnicas e dos saberes que nas últimas décadas se foram tornando raras e que agora é possível aplicar em novos contextos. O galês David Hieatt fundou uma companhia de jeans com operários de uma antiga fábrica, iniciando um bem-sucedido processo de reconversão: “Não é apenas o produto final que interessa, é também o processo. Em causa está um saber que se iria perder e que é garantia de qualidade e distinção, ao mesmo tempo que também existe uma história, a daquela fábrica e das suas pessoas, que deve ser valorizada.”
Dessa possibilidade de juntar pessoas, às vezes antagonistas, à volta de um projecto que as desloca do conflito, falou o libanês Kamal Mouzawak, responsável por um mercado em Beirute que agrega tradições e agricultores de pequena escala. “Make food, not war”, brincou ele, falando da possibilidade de aproximar comunidades à volta do mesmo objectivo.
Catarina Portas, fundadora de A Vida Portuguesa, salientou que alguns países sabem comunicar o que têm para vender, “mas deixaram de saber fazer”, porque não têm apostado na “transmissão do saber, com memória, com diferença, com identidade.” É preciso uma outra forma de olhar para as coisas, “mais tangível”, disse, lamentando que não exista muita consciência dessa riqueza e herança, aqui.
Foi aí que Tyler Brûle argumentou que Portugal era um país que “fazia sentido”, porque reunia as características ali nomeadas por quase todos. “Autenticidade, memória, sentido de lugar.”
Um luxo, portanto. O que falta para o activar? Longa conversa."

Vítor Belanciano, Público

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