segunda-feira, 9 de março de 2015

As valentes marcas portuguesas

"Pensa-se (e nem sempre se diz) que por trás de uma mulher de sucesso está muitas vezes um homem com capital. Catarina Portas pode ter um apelido de peso mas quando decidiu lançar-se à aventura que é A Vida Portuguesa tinha apenas 1.000 euros para investir e uma certeza: que os produtos portugueses podiam voltar a ter alma, comercial e cultural. Na loja do Largo do Intendente, uma das quatro que já tem no país (além da primeira, no Chiado, e dos espaços no Mercado da Ribeira e no Porto), rodeiam-nos alguns dos capítulos de uma história muito portuguesa. O novo design da tradicional Bordallo Pinheiro, o sabor atualizado dos chocolates Regina, a voz inquieta de António Variações em fundo. “Acreditava que havia uma série de produtos portugueses que tinham absolutamente lugar no mercado contemporâneo se fossem apresentados de outra forma”, diz Catarina sobre o projecto que criou há mais de uma década, enquanto pesquisava sobre marcas antigas portuguesas. “Queria provar que uma loja não tem de ser transformada num cubo branco, como as que existem nos centros comerciais, para ter sucesso e, ao mesmo tempo, tinha uma vontade egoísta de que esses produtos não desaparecessem”, ri-se.
Tudo começou em livro, aquele que estava apenas a escrever na sua cabeça. “Às tantas, comecei a colecionar os produtos sobre os quais pesquisava e a organizá-los em caixas com informação. Decidi depois pôr estas caixas à venda em algumas lojas”, conta. “No fundo, criei o negócio para pagar a investigação. Só que o negócio floresceu e nunca mais tive tempo de fazer o livro!” A primeira apresentação da marca, em 2004, ocupou um canto de uma concept store de design na Rua das Flores, em Lisboa. Sucesso imediato. “Um ano depois, quis testar novamente o conceito e organizei na Loja da Atalaia, no Bairro Alto, um bazar português de Natal.” Repetiu a proeza 12 meses mais tarde, na loja do Chiado e nunca mais de lá saiu. Naturalmente, os 20 anos de experiência em comunicação social compensaram. “Sabia a quem devia telefonar, como explicar a marca, a importância de enviar boas fotografias e de ter um bom site (hoje também tem uma plataforma de venda online). Logo na primeira vez que apresentámos o projeto, foi para o ar uma reportagem no telejornal da RTP. Percebi que tínhamos tocado num nervo.” 
Em 2009, começou também a revitalizar os Quiosques de Refresco, velhas glórias das nossas praças, em lugares marcantes como o Chiado, o Príncipe Real e o Cais do Sodré. 
Os ingleses dizem que a distância intensifica o amor que temos às pessoas e às coisas e Catarina é a primeira a confirmar que o afastamento só lhe aumentou a convicção. “Tive uma educação muito afrancesada, vivi em frança e em Inglaterra quando era pequena, estudei no liceu francês e, a partir dos 20 anos, comecei a viajar com muita frequência para a Índia. Foi um treino para mim, que sempre adorei estar em mercados à procura de peças”, recorda. Sem falar no facto de ter passado três anos da sua carreira na Marie Claire, onde imaginava páginas de shoppings.
Em Portugal, fez-lhe impressão ver fábricas nacionais a definhar com a injustiça do tempo, das modas e da falta de amor-próprio. “Apaixonei-me quando descobri as suas estruturas, o seu passado e os seus incríveis arquivos”, diz. São “marcas valentes”, como Catarina lhes chama, gerações de famílias inteiras encarregues de um património que já não é só deles. “É preciso muita coragem para conseguir manter uma marca durante 100 anos, sobrevivendo a crises e falências, são exemplos de persistência e valentia. Os seus produtos não só valem por si, como ajudam a contar a história do país.” Os sabonetes Confiança são o exemplo mais óbvio de como o consumo diz muito sobre nós. “Houve rótulos monárquicos, houve sabonetes da República, que reeditámos no centenário da mesma, e sabonetes Girândola Vila Morena em 75 - está lá tudo.” Mais: os sabonetes feitos durante a Segunda Gerra têm menos cores e o papel tinha menos qualidade, “o que nos diz muito sobre as condições da altura, mesmo para um país neutral”, como se descobrem as cores completamente diferentes para o mercado colonial, porque “em Moçambique e em Angola as pessoas não se vestiam de forma tão soturna como aqui”.
No início, Catarina tinha uma amiga parceira no negócio, mais ligada aos números, mas separaram-se quando perceberam que tinham objectivos diferentes. Entretanto, tirou uma pós-graduação em Gestão na Universidade Nova de Lisboa. “Não sendo a minha área, as coisas sempre foram feitas com bom senso e uma máquina de calcular, que há oito anos trago comigo”, diz retirando o enorme objecto da carteira. É com ela que gere as duas empresas , os Quiosques de Refresco e A Vida Portuguesa (na loja do Porto tem como sócia a Ach. Brito). Para a primeira, prepara a abertura de um novo quiosque na Sé. Para a segunda, planeia uma expansão controlada, “um passo de cada vez”. Já recebeu vários pedidos de franchising, aos quais resiste para conseguir manter a personalidade diferente de cada loja e escolher lugares com algo para contar. “O sucesso não é só o dinheiro, embora este seja necessário, é preciso uma empresa sustentada por trás”, resume. Até porque paga mais de 60 salários, uma responsabilidade boa. “Costumo dizer às pessoas que trabalham comigo que não estão só à frente do balcão, estão nas trincheiras de uma guerra que é muito maior do que isso. Não somos apenas as pessoas que estão nas lojas, trabalhamos para que muita gente no resto do país, entre fábricas e fornecedores, tenha emprego”.
Levar esta estranha forma de vida lá para fora é outro dos desejos que tem há muito. “Paris parece-me uma das cidades evidentes.” Está ainda em vias de estabelecer um gabinete de design próprio d’ A Vida Portuguesa, para que os projectos possam fluir em vários ângulos, incluindo o lançamento de mais produtos exclusivos e design de interiores. “Talvez possa agora concretizar o livro sobre as nossas marcas que queria fazer antes de tudo isto começar”, ri-se. E ainda quer publicar algo sobre o Frágil, uma intenção antiga a que espera regressar, ao lado de Manel Reis.
Aos 45 anos e com a sua própria empresa desde os 30 e pouco, a jornalista tornada empresária cresceu com o negócio e percebeu que “escrever e fazer é muito diferente.” Há uns anos, a primeira qualidade de um produto era ser estrangeiro, já o Eça de Queiroz o dizia, mas A Vida Portuguesa ajudou a mudar essa atirude.” Poliu ideias cobertas de pó, sem saudosismos, antes com vontade de lhes devolver a estima merecida de todos. Na verdade, “nunca pensei que pudesse criar uma ligação tão forte e de facto mudar alguma coisa”. Não o mundo todo, mas um bocadinho de cada vez."

Rosário Mello e Castro
VOGUE Portugal, Abril 2015

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