terça-feira, 5 de abril de 2011

Raphael, o provocador

"O gesto do Zé Povinho regressa nesta época, e com mais força, às tabernas do país, mas também às lojas «de design» que, de repente, perceberam que a maior parte das peças de faiança «Bordallo Pinheiro» são, que ninguém duvide, verdadeiras obras de arte. Até as famosas couves com que embirrámos durante anos a fio - «ó mãe, isto é tão piroso!» - ou mesmo as andorinhas que se espalhavam pelas paredes da varanda (quando as varandas ainda não tinham marquises) se tornaram quase objetos de culto entre os portugueses. Dois must have, que poderíamos continuar a assinalar com outras tantas peças. Inesquecíveis são, também, as elegantes rãs ou os «sapudos» sapos; as vendedeiras com ar maroto e os polícias com ar sério; os gorazes de olhos esbugalhados; os tomates e as cerejas de um vermelho surpreendente; as canecas com caras tristes, outras parvas e outras alegres. Falta-nos referir, naturalmente, o famoso frade que fazia corar ate o maior agnóstico.

Uma história pintada luta. Os dias já foram maus para a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, fundada em 1884, com o propósito de revitalizar as artes tradicionais da cerâmica e do barro, cruzando-as com a modernidade de diversos estilos que anunciavam o futuro mas, sobretudo, com a originalidade do seu criador, Rafael Bordallo Pinheiro. Mas os dias menos bons estão a acabar, devagarinho, como devagar são feitas a maior das peças que dali saem. Os moldes, esses, há muitos que estão feitos, mas, depois, e preciso que os artistas «construam» as peças - primeiro uma perna, depois outra, a seguir o bico, mais tarde a cauda e ainda falta a crista, se de um galo se tratar. E ainda falta a pintura, quase toda feita manualmente, com uma precisão que merece ser observada. As peças nem sempre são economicamente acessíveis, mas percebe-se porquê. Esta antiga fábrica, cujo museu pode ser visitado mediante marcação, é um regalo para os nossos olhos.

Raphael, o provocador. Bordallo dedicou atenção a todos os pormenores na edificação do seu maior projecto: desde a escolha do terreno até à construção de uma escola primária para os filhos dos operários, no espaço da fábrica. A paixão e a criatividade colocadas no trabalho, a consciência social, o humor e a transgressão das ideias feitas deram a esta empresa uma qualidade notável, que ainda hoje mantém uma herança de enorme valor. Um património artístico e histórico que é resgatado (em boa hora) pela aquisição da agora designada Faianças Artísticas Bordallo Pinheiro, por parte da Visabeira Indústria.

Os sete 'Bordallianos'. Mas a arte do barro, da faiança, também não quer viver só do passado, ficar estagnada à espera que as recordações sejam suficientes para continuar a viver. A criatividade e o humor vão continuar. Para assinalar o 125º aniversário desta fábrica foram convidados sete artistas nacionais - Bela Silva (Gosto tanto de ti), Catarina Pestana (A Banca) , Elsa Rebelo (Menina Peixe) , Fernando Brízio (Elefantes), Henrique Cayatte (Lisboa), Joana Vasconcelos (Dueto) e Susanne Themlitz (Cactus) - que recriaram e reinterpretaram Bordallo Pinheiro usando maioritariamente os moldes do próprio artista. Nasceram, assim, sete peças de edição numerada e limitada a 125 exemplares que continuam, sem dúvida, o percurso traçado há mais de um século pelo mestre." Ana Pereira da Silva, revista Visão, 31 de Março 2011.

Sem comentários: