domingo, 25 de abril de 2010

Pequena História

Há uns tempos atrás, passeava eu descontraidamente no Centro Português de Fotografia, no Porto, quando de súbito estremeci. Na parede, uma fotografia que apenas deixava ver umas instalações forradas a azulejo branco. Olhei e reconheci-as de imediato, com um calafrio. Confirmei na legenda: tratava-se do parlatório da prisão de Peniche. A última vez que ali estive, tinha cinco anos. Corria o ano de 1974, um ano que haveria de ser uma verdadeira prova de velocidade, até na vida de uma criança de pensos rápidos colados nos joelhos.

É sempre intrigante aquilo que a nossa memória decide seleccionar de tudo o que vivemos. Mais misteriosa ainda é a memória das crianças. E uma criança na revolução, de que se lembra ela? Eu lembro-me dos meses que a precederam. De o meu irmão Miguel ter regressado a casa de cabeça rapada depois de ter sido detido numa qualquer manifestação. Gritávamos nós, os miúdos, “Ó careca tira a boina” e ele arreliava-se. Também me lembro das botas pesadas de uns senhores que uma manhã nos entraram pela casa dentro a inspeccionar livros e a fazer perguntas e, sobretudo, do temor que senti em todos. E das idas regulares a Peniche, àquele mesmo parlatório branco, visitar o namorado da minha tia que aí estava preso por motivos políticos. Como era uma criança minúscula, algum dia me deixaram passar para o lado de lá e recordo-me de andar ao colo de alguns presos e dos seus braços abertos de alegria. Lembro-me de, quando o Zé foi preso, a minha tia ter saído de casa. Às vezes íamos vê-la a um qualquer café no outro lado da cidade, no “estrangeiro” que era onde me diziam que ela estava.

Porém, do dia da Revolução, não tenho qualquer memória. Mas os dias imediatos foram inesquecíveis. Em Peniche, esperámos durante horas, entoando um grito de ordem que me entusiasmou - “Pides lá para dentro, presos cá pra fora!” - e, finalmente, num escuro incandescente, no meio de um corredor humano, os presos sairam. O Zé avistou-me, pegou em mim e alçou-me às suas cavalitas. Havia lágrimas nos olhos dos adultos, eu ria-me no meio de tanta e incrível emoção e alegria. Nessa noite, vi nascer o sol, terá sido a primeira directa da minha vida e depois não me deixaram ir à escola.

Nos meses seguintes, o meu bairro mudou. A Graça ocupou um casarão na Rua da Arriaga e transferiu para lá o jardim escola. Noutra moradia, ocupada pela LUAR, sussurrava-se que havia armas e, quanto à vizinha americana que se veio instalar no prédio defronte, constava que era da CIA (eu não conhecia esta CIA mas, como baixavam a voz em tom conspirativo quando diziam isto, ter-me-á parecido importante e fixei). Também fui de excursão a Baleizão conhecer outra Catarina, a mesma que a minha mãe desenhava a lápis de cera quando me contava histórias. O Coelhinho Branco tinha desaparecido definitivamente na sua toca, a horta do momento era mais uma ilha que se chamava Cuba onde os meninos eram felizes porque aprendiam a ler.

Tanta inocência na infância, tanta inocência na revolução. Depois crescemos, com todas as dores consequentes. Mas a revolução, pura energia e mera felicidade, ainda está em nós.

Crónica de Catarina Portas para o Público de 25 de Abril de 2009.

2 comentários:

dores disse...

Encantou-me, esta "pequena" Grande História.
Sabe bem um banho de inteligência.
Obrigada

Rosina Ramos disse...

Este forte está aberto ao público e é possível percorrer esta a sala por dentro e por fora (se é que já há distanciamento para isso).O que mais me marcou foram as cartas escritas pelos pais cheios de medo a tentarem apaziguar os seus filhos. by Rosina Ramos